segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Os 36


Esse ano foi o ano que eu mais me protelei em escrever essa ode ao envelhecimento. Muito por causa da minha cabeça que não está tão responsiva como eu queria que estivesse, às vezes acho que a criatividade foi embora e me esqueceu aqui e... fazer o quê né.


Reli a ode do ano passado e do meu otimismo frente ao ano que se iniciava e devo dizer que, antes das festas de carnaval eu estava com todos os projetos que estavam para acontecer frustrados. Confesso que foi um baque, se fosse um ou outro projeto que falhou miseravelmente ok, eu poderia gerenciar mentalmente... mas eram meia dúzia de projetos que não viram a luz da ribalta. E olha que a maioria dos fracassos nem foi por minha culpa, a maioria eu fiz tudo "certo" e por motivos alheios à minha vontade não frutificou... Não vou ser otimista em achar que o próximo ano vai ser melhor porque, sinceramente, sinto que o que eu tinha de esperanças evaporou, esvaiu-se, foi embora sem nem uma carta de adeus, apenas saiu e aqui ficou tudo vazio.


Cada vez me sinto mais o Fernando Pessoa em Tabacaria (meu poema preferido em língua portuguesa) "crer em mim? Não, nem em nada.", a grande verdade é que não sei se deveria ter posto mais uma ficha na máquina. Não há dia que eu não pense que, talvez, não tenha sido a melhor decisão do ano que passou. Ou talvez tenha. Sinceramente não sei.


Agora estou aqui no dia quinze de novembro tendo uma lembrança de quando era criança, ali pelos meus onze, doze anos que eu aproveitava o dia quinze para levar os convites para a minha festa de aniversário ou no dia vinte ou no primeiro sábado seguinte. Acho uma merda que minha lembrança só resgata fragmentos de memória, nunca algo maior... e a lembrança era eu com minha bicicleta (outra, antes da Eleanor eu tive uma BMX da Monark, ela não teve nome e não sei ao certo que fim levou) descendo pela rua ao lado do colégio indo na casa de algum dos amigos daquela época convidá-los para a festa.


Relembrar isso me pôs a pena à mão sobre quantas pessoas entraram e saíram da minha vida e quantas, apesar dos pesares, das revoluções tecnológicas, permaneceram. Feliz ou infelizmente ninguém daquela época do meu eu criança permaneceu. Tal qual Dom Casmurro minhas amizades atuais são de data recente.


Estou filosofando demais mas não posso cobrir o elefante com um lenço: o blog acaba aqui. Se você ainda lê ou esperava alguma grande virada minhas mais sinceras desculpas. No último ano eu, apesar de ter escrito, não senti nenhuma vontade de postar. Escrevi apenas para uma grande gaveta virtual (a qual preciso fazer o backup) e que, talvez um dia, verão olhos além dos meus.


Não, não vou apagar o blog ou qualquer coisa que o valha. Ele vai ficar aqui como o repositório de meus escritos, um recorte temporal de uma época onde blogs existiam, pessoas postavam neles e outras pessoas liam. Hoje isso não existe mais. Tem alguns avanços tecnológicos que me recuso a ir e um deles é migrar conteúdo para vídeo. Apesar de editar vídeo com certa qualidade eu me recuso a produzir vídeos, usar a minha cara ou qualquer coisa assim. A simples ideia de aparecer em uma tela me assusta. Quase uma fobia.


Termino essa ode sem muita clareza do real objetivo desse texto e do quanto eu tergiversei. Citei Pessoa e Machado de Assis, ponderei citar alguma música mas nenhuma me vem a cabeça agora, nem mesmo as músicas que postei aqui em anos anteriores. Acho que ando mais cansado do que o normal. 


É isso. Talvez no decorrer do ano que se inicia agora eu mude de ideia e volte a postar ou comece a postar em outro lugar... não sei. Eu amo escrever, já escrevi muito mais, mas ainda gosto de ter uma ideia, fechar os olhos e deixar a mente guiar meus dedos pelo teclado enquanto o texto surge quase como mágica e, depois de alguns minutos, chego a estar com dor nos pulsos, os dedos amortecidos e um cansaço recompensador por ter feito algo realmente bom.


Muitos talvezes nessa ode. Vou deixar apenas uma certeza: mais uma ficha na máquina foi inserida. Vamos ver onde essa "vida" vai me levar. Dessa vez sem esperanças, apenas curtindo a paisagem e tentando não pular as cutscenes e os níveis de tutorial.


Vou encerrar a transmissão dessas palavras agora. 


Cuidem-se. 


Bebam água.

domingo, 20 de novembro de 2022

os 35

 Se você está lendo isso é sinal que eu morri.

Ta, ok, não literalmente. Ainda não. Não quero usar o termo "renascer" porque, sinceramente, acho ele idiota no meu caso. Por isso, vou deixar termos em aberto e diversas reticências. Muitas delas estratégicas, muitas em momentos que eu, realmente, não sabia como terminar a frase e usei o recurso mais polêmico da literatura que é o uso constante de reticências. Se, por um lado, a reticência pode representar uma pausa, um momento de reflexão no escrito... por outro lado pode representar ou uma falta de repertório por parte de quem escreve ou uma falta de rumo no escrito e, por isso, deixa a frase... reticente.


Antes de qualquer coisa tenho que fazer um aviso que, aqui tem algumas frases e decisões que tomei nos últimos anos que podem desagradar as pessoas e, por isso, já deixo meu mais sincero "desculpa, mas é assim que a minha cabeça funciona" e, enfim. Dez anos atrás eu estava completamente sem rumo na minha vida e propenso em findá-la tão logo fosse possível. Mas aí eu resolvi me dar dez anos de prazo para encontrar esse rumo, o mais famoso "se em dez anos eu não achar algo que me anime, que me faça ter prazer em estar nesse grande geoide atado à gravidade do sol flutuando no éter do espaço eu desisto", pois bem...


Fiz a besteira de ler odes ao meu envelhecimento (ou a mais uma volta em torno do sol) de anos anteriores e iam desde um tom, estranhamente, otimista até uns bem melancólicos e bastante pesados em reler, até porque eu vivi aquele momento e... não é muito bom relembrar.


Agora sei que você, leitore, está se perguntando se eu achei o tal rumo e a coisa que me animasse em continuar a resposta é um, vago, porém sincero, talvez. Escrever, fotografar e brincar de grudar músicas já eram coisas que eu gostava, esse ano apareceu um freela-semi-fixo de edição de vídeo e... olha, não é que eu sei um pouco disso? Ta sendo divertido, pegar um arquivo bruto e ir colocando itens, imagens, uns memes... é legal, confesso que gostei disso.


O último ano não foi lá grande coisa apesar dessa descoberta, mas... quero evitar falar que "ta promissor", mas... ta promissor. Apesar de algumas merdas que aconteceram o ano chega ao seu fim com uns ares melhores e, nesse exato momento que essa crônica é postada, eu, muito provavelmente, estou com os pés na areia, renovando meus votos com o mar.


Acho que o mar vale um parágrafo inteiro, então vamos lá: Apesar de ter nascido a mais de duzentos e cinquenta quilômetros do mar, desde pequeno eu o via quase todo ano... e, quando me formei no ensino médio e fui morar numa cidade de praia eu me dei conta de que aquela massa de água e eu tínhamos uma ligação... por isso, todo ano, nessa data, eu dava um jeito de estar diante da majestade. Não ironicamente a Janaína tem esse nome, é minha homenagem à Iemanjá. Eu amo o mar e, só de morar longe, sinto falta. Por isso juntei alguns minguas e me dei de presente pegar um ônibus com alguns carrinhos na mochila e vir ver o mar...


Quando falei ali pra cima de coisas promissoras... talvez tenha sido um pequeno exagero, porque são coisas que estão acontecendo e que podem, ou não, crescerem e evoluírem para coisas maiores. Não pretendo abandonar o blog (apesar de postar tão pouco que possa parecer isso), mas a tendência é eu postar algumas coisas em outro lugar também, sobretudo "coisas que não caberiam no blog por serem muito experimentais e/ou diferentes". Além de coisas profissionais que, sinceramente, prefiro não falar sobre para não zicar. Sim, Lu envelhecendo se tornou uma pessoa com algumas superstições. Vai entender.

Não tinha conseguido decidir uma música pra encerrar a postagem e não quero fazer uma playlist... mas aí lembrei de uma música de um anime (sim, Lu ainda vê anime) que vi recentemente e me pagou pela sonoridade e... como achar a tradução dela é um saco, aqui dá pra ver a tradução do google mesmo.

Enfim... pra encerrar essa ode ao ano que passou quero agradecer por quem ainda permanece em minha vida e quem chegou ou voltou. Nunca vou conseguir agradecer a contento o quão vocês são importantes na minha vida. De coração, meu mais sincero agradecimento. 💜💜


E que venha a próxima ficha na máquina.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Martini

O dia se desenhava triste, sem nenhuma história que valesse o relato quando ela entrou. Receio que os cabelos negros como a noite sem Lua viram muito creme de pentear enquanto estavam molhados e, agora, o cheiro de abacate se misturava ao odor amargo de cerveja, suor e fumaça de gelo seco da banda de rock psicodélico que tocava, aos berros, alguma música inteligível.

- Boa noite - Ela sorriu com os dentes levemente amarelados, assenti com a cabeça - Por gentileza eu gostaria de um Martini.

- Perfeitamente - Acho que era a primeira vez que faria tal bebida desde o curso, quer dizer, em casa gostava de fazê-la para curtir o amanhecer depois de uma noite de trabalho, por isso fiz tudo num automatismo que faria quem não me conhecesse achar que sou alcoólatra, porém não sou... pelo menos espero que não - Aqui.

- Obrigada - Ela sorriu com os olhos colocando a ponta dos lábios carmins na beira da taça e dando um gole tão curto que faria um conta-gotas parecer um rio - Muito bom, perfeitamente equilibrado, tens talento.

- Obrigada - Meu turno de sorrir com os olhos - É um dos meus drinques preferidos.

Merda. Dei informações demais. Espero que Martini não tenha me ouvido. Quebrei uma das principais regras minhas: não falar muito sobre mim, por mais que eu goste desse emprego a última coisa que quero é um ou uma stalker atrás de mim. Só de lembrar do motivo de meu exílio nesse canto da Metrópole me fez murchar por completo, eu senti isso, meu semblante agora deveria estar entre o triste e o apático.

- Faz um pra você - Martini notou? - Eu pago.

- Adoraria - Respirei fundo retomando o controle e soprando aquela nuvem pesada para longe - Mas se meu chefe me pega bebendo é justa causa.

- Faz sentido - Ela sorriu - Meu ex-marido era rígido com suas funcionárias também, por isso eu entendo.

- Ele tinha um PUB?

- Não não - Ela bebericou mais um gole da bebida enquanto o rosto ruborizou suavemente - Ele tinha uma gráfica, se não saísse perfeito, ou como ele dizia "tão bem impresso que a foto queira sair do papel", era tudo jogado fora... toneladas de material por mês - Martini sorveu um pouco mais do líquido - Foi o que fez ele falir inclusive.

- Eita.

- Exatamente... eita - Um farto gole que secou a taça - Me faz outro? - Martini tomou a azeitona entre os lábios, se eu não estivesse cansada e convicta da minha condição atual, diria que ela estava flertando comigo, servi a segunda rodada - Obrigada. - Enfim, ela me olhou fixamente - E você, qual sua história?

- Eu? - Servi uma cerveja para um homem de cabelo comprido e jeito de motoqueiro - Minha história é a mais simples do mundo: um dia fiz um curso de drinques, fiz o teste aqui e agora estou aqui.

- Entendo... - Ela bebeu um gole - Reservada, gosto disso nas pessoas, mesmo eu não sendo muito admiro em quem consegue - Martini olhou um pouco para a banda, aquele som lhe causava estranheza - Como chama essa banda?

- Poop'n'Corn - Sorri de canto jogando a sobrancelha para o alto, que nome escroto - A segunda sexta-feira do mês sempre tem uma banda novata que toca aqui, semana passada foi um grupo de jazz.

- Ah, então aqui é eclético?

- Você nem imagi... - Controla essa língua - Muito, por isso gosto de trabalhar aqui.

- E, quando não está atendendo aqui, o que costuma fazer?

- Dormir - Sorri, eu ainda estava conseguindo desviar bem da torrente de perguntas de Martini.

- Não sai com amigos? Cinema? Exposição? Show? - Diante da minha negativa ela se pronunciou sobre o balcão - E se eu te convidar pra sair, você toparia?

- Não. - Falei seca, corte rápido, a última coisa que eu queria era conhecer alguém daqui - Cuido de uma tia que está acamada por causa de uma trombose no pé direito - Hora de exercitar a mitomania - E, quando não estou cuidando dela, estou aqui... estamos esperando a fila do hospital público andar.

- Que merda hem - Martini engoliu a história junto da bebida e tomou a azeitona entre os dentes enquanto abria a bolsa e tirou um pequeno cartão - Aqui tem meu telefone, tenho um grande amigo que é dono de um hospital e me deve um favor... já que não vamos sair, pelo menos quero poder te ajudar em alguma coisa.

- Obrigada - Peguei o cartão ignorando o nome, depois pesquisava quem era, só agora me dei conta que as joias que ela usava podiam não ser bijuteria - De coração, obrigada mesmo - Sorri com toda a sinceridade que os anos fazendo teatro me ensinaram a transmitir.

- Antes de ir - Martini fuçava dentro da bolsa - Posso saber seu nome pelo menos?

- Letty - Coloquei a mão próximo demais da hélice? Hora da correção - Não, antes que pergunte, não é um apelido para Letícia, é Letty mesmo, meu pai adorava uns nomes estrangeiros.

- Legal - Martini colocou sobre o balcão uma nota de cem reais - Aqui, uma gorjeta pelo papo e, espero que entre em contato para eu ajudar sua tia - Sorri recolhendo a nota e colocando-a no avental - ... isso se tiver tia né?

Antes de se afastar ela deu uma piscada. Será que não fui tão convincente? Caralho. Que merda. Uma noite que parecia fadada ao tédio de clientes pedindo cerveja, água e refrigerante trouxe alguém que, espero, não seja um problema no futuro. Balancei a cabeça negativamente. O futuro é distante. Não vou me preocupar com ele, afinal, eu não o controlo... Mas, puta merda. Por que agora?

domingo, 27 de março de 2022

Livro de Banca

Eu devia saber que aquele sorriso da noite, esboçado pela Lua minguante, era tão perigoso e lascivo quanto duma bela dama que entrou no bar naquele instante nesse dia de fins de verão onde rajadas de vento nos lembram o que esta por vir nos meses seguintes. Eu poderia passar por mais um tipo canastrão que vem aqui dia após dia buscando respostas ao vazio de suas almas. Minha caçada era justamente a oposta: estava atrás de dúvidas. Será que a balconista cuspiu no meu drinque? Será que esses três espetinhos são mesmo de carne bovina? Será que hoje é quinta ou sexta? Passou da meia noite, sexta. Menos um questionamento no meu caderno mental.


Seis mesas na diagonal direita de onde estou uma mulher loira, vestido rosa-chá, ombros desnudos olhava fixamente na minha direção. Ou olhava através de mim? A baixa iluminação não dava a mínima das certezas se aquela fixação era para a minha pessoa ou não. Que foda. Pedi outro drinque. Mais um Scott com três pedras de gelo. Tão logo chegou ergui o copo em um brinde. Ela, quase imediatamente, correspondeu ao gesto.


Voltei a olhar em volta. Apesar de ser uma quinta barra sexta feira a casa estava com pouca gente. O pequeno palco não tinha ninguém cantando e a música vinha duma gravação. Era jazz ou blues? Soul talvez.


Essa quase certeza pediu mais uma dose. Novamente o drinque e o brinde correspondido. Afinal, o quê eu estava esperando? Se nesse tempo ela estava sozinha era sinal que estava desacompanhada. Ou tudo isso era parte do experimento social dum parceiro voyeur que queria testar os limites da relação e estava no balcão só esperando alguém disposto a uma investida para intervir e começar uma briga generalizada? Preciso parar de ler livros comprados em bancas de jornal decadentes. Aliás, triste fim das bancas de revista. Triste não, nunca traziam lotes novos de figurinhas, bem feito, isso sim. Se bem que a culpa aí pode ser do distribuidor ou até mesmo da editora que mandava lotes viciados para a mesma região do país forçando as pessoas dispostas a completar o álbum a viajar dezenas de milhares de quilômetros para, correndo o risco de não ter ido longe o suficiente, encontrar a mesma gama de figurinhas. Anotação mental: jogar fora os romances de banca. E o que colocar no lugar? Fica o questionamento.


A quarta dose veio com uma pedra de gelo a mais, nela estava a coragem necessária para, correndo o risco de ter o corpo jogado em um beco aqui perto, perguntar a loira se tinha visto algo que lhe agradava. Traria a tona um questionamento, uma pergunta a outra pessoa, uma resposta que não dependeria só de mim. Levantei. Ela se levantou. Caminhei na direção dela e ela fez o mesmo. Tivemos o mesmo ímpeto no mesmo instante? Que emocionante. Era como o final daqueles livros que vou jogar fora ao chegar em casa.


Vexame. Podia ouvir o sorriso da noite transformar-se em uma sonira gargalhadas. Passei a noite toda flertando a distância com um espelho. Está decidido, ao chegar em casa vou me jogar fora com os livros.

sábado, 19 de março de 2022

Margarita

Em noite de DJ renomado tipos mundanos invadiam a casa. A maioria interessado em pegar aquela bebida pronta dentro de uma garrafa long neck. Não me importava tanto, porém a tendência a terminar a noite completamente entediada me assombrou até aparecer a loira de verde. Parou no balcão, fez uma careta olhando as garrafas atrás de mim, ponderou um instante, teve o rosto iluminado pelo telefone. Será que ela esperava por alguém? Não era raro um casal dar amassos na quina da longa prancha de madeira tratada e com o nome do PUB escrito com um pirografo. A tela apagou antes que pudesse ver qualquer traço diferente no rosto, pareceu mais uma pessoa comum que espera outra pessoa comum.

O peito se inflou e a correntinha de material dourado - ouro? - foi atingida pelo spot de luz que ficava pouco além do balcão. Voltando a olhar para as garrafas atrás de mim e terminando a inspeção me chamou erguendo a ponta do indicador esquerdo. Unha pintada de rosa. Meio fora de moda acho.


- Boa noite - Voz doce, bonita mesmo, será que ela trabalhava em rádio, locução ou algo assim? - Quero uma Margarita.


- Perfeitamente.

Um dos primeiros drinques que tomei na vida. Pelo menos desses mais elaborados. Sal. Limão. Tequila mexicana. Com maestria de quem já fez mais de uma centena delas em meu pouco tempo na casa fiz uma fatia fina de limão adornar a lateral do copo. Uma rápida inspeção mental. Nenhum ingrediente faltando. Quase quis tomar uma, mas é como sempre ouvi: onde se faz o pão não se come a carne. Pensando bem esse ditado deveria ser algo relativo a romances no trabalho. Porém... uma bebida não pode ser a paixão da bartender? Devaneios.

Servi à dona Margarita seu drinque. Ela me agradeceu com um sorriso, erguendo a taça como quem brinda e bebendo um gole curto. O celular voltou para a mão. Luz. Olhos rápidos. Narinas abrindo e fechando rapidamente. Estaria ela hiperventilando? Talvez estivesse com raiva. Descrente do que lia na tela do diminuto aparelho. Será que esse balcão teria sua integridade posta à prova contra o smartphone? Tomara que não. Um gole tão curto que arrisco dizer que só umedeceu os lábios. Digitação frenética. Outro cliente aparece. Cerveja. Entrego rápido, já sem a tampa e colocando na sua comanda mais uma. Era a quinta da noite. De volta à Dona Margarita. O semblante mudou rápido. Usando o espelho que ficava atrás das garrafas ela passou as mãos pelo cabelo. Nervosa sua visão procurava algo. Me chamou.

- Pode me dar uma opinião sincera?

- Claro - Não seria a primeira vez e, espero, que não fosse a última que eu era convidada a opinar em algo - Pois não?

- Então - Lá vinha uma bomba psicológica, dona Margarita tinha sido demitida, batido o carro e terminado um relacionamento de três anos e agora queria um ombro amigo para derramar suas mágoas, respirei fundo no instante da primeira frase dela me preparando para ampará-la caso fosse necessário, será que eu ainda tinha alguma cota de bebida por conta da casa essa semana? Calma, vamos ver qual é a história triste dela e opinar da maneira mais honesta e não ofensiva que fosse possível, Margarita afastou os lábios puxando ar corpo adentro, soltando em seguida para se debruçar no balcão se aproximando, era agora, a hora do grande acontecimento que a trouxe até aqui - Minha maquiagem ta boa?

Decepção. Toda uma construção psicológica foi por água abaixo com uma pergunta tão banal quanto o drinque que ela bebia. Puta merda. Já vi que hoje o dia não reserva grandes aventuras. Fiz o tradicional gesto humano de que estava tudo bem com o polegar erguido e o sorriso mais sincero que eu tinha em meu repertório. Por sorte - ou destino - um casal veio buscar mais cerveja. Enquanto eles tomavam a garrafa nas mãos coloquei a décima primeira bebida na comanda. Enquanto isso Margarita sorriu olhando para o telefone para, logo em seguida, pousá-lo no balcão. Um homem de idade aparentemente próxima da dela se aproximou. Camisa de cor clara, com botões, calça escura, paletó escuro sentou ao lado dele. Seria um encontro desses aplicativos que os jovens usavam para conseguir uma transa? Pode ser. Tomara que Margarita não entre na estatística da violência urbana. Ele pediu o mesmo drinque dela. O casal Margarita. Beberam conversando, foram para a pista e lá ficaram por muito tempo, dezenas de cervejas depois ele passou pelo bar. Banheiro. Saída. Dez minutos depois ela fez o mesmo, não sem antes parar e me agradecer pela ajuda mais cedo. Era a hora que deveria vir uma boa gorjeta. Mas a noite estava tão frustrante que nem isso aconteceu. Desejei uma boa noite e fiz votos para que ela voltasse, afinal, o renomado DJ teria mais duas noites na casa antes de voltar à sua turnê pelo litoral. Margarita disse que voltaria. Espero que sim.

sábado, 12 de março de 2022

Whisky com gelo

O vento frio entrou acompanhada dele. Homem de meia idade, algumas falhas no couro cabeludo, terno bem cortado, gravada de linho tão brilhante quanto o balcão no começo da noite. Conforme me aproximei para atendê-lo pude notar o olhar, ele me esquadrinhou inteira. Talvez eu devesse deixar um botão a mais aberto na camisa para vir uma gorjeta maior, como me sugeriu uma das garçonetes que tinha mais tempo de casa. Amanhã, na frente do espelho, eu penso nisso.

- Boa noite - Sempre fui um pouco avessa à interações com o público, talvez essa experiência fosse boa para resolver isso - O que vai querer hoje?

- Um whisky, três pedras de gelo.

- Perfeitamente!

Deixei o sr. Whisky sozinho no balcão enquanto ele me seguiu com os olhos, estava interessado em mim ou na qualidade do destilado? Como não foi feita menção sobre qual a origem da bebida, optei pelo do Tennessee, mais barato e que ajudava a casa a lucrar mais, se viesse de Terras Altas Escocesas o drinque custaria facilmente o dobro. O sr. Whisky vai me agradecer no final da noite quando vier a comanda abaixo do que ele espera. Uma. Duas. Três pedras de gelo. Colherzinha de plástico preto para mexer. Guardanapo por baixo do copo e voila.

Um agradecimento com uma inclinação para a direita com, não mais que trinta graus se fez juntamente com um sorriso. Junto do sorriso minha visão foi atraída pelo anel dourado. Um gole curto e o semblante antes esbranquiçado fez o rosto do sr. Whisky ganhar vida. Rodando a banqueta para a pista ele parecia procurar alguém. Duvido muito que seja a sra. Whisky. Mas não vou julgar. Eu sou só a... barwoman? Termo ridículo. Bartender soa mais bonito e acho que era o que veio no meu diploma de mixologia. Mais um gole na bebida. Dessa vez um pouco mais demorado. Ele parecia ter encontrado quem buscava. A péssima iluminação da casa tinha por objetivo fazer com que as pessoas não se vissem completamente tendo que vir até o bar para ter um pouco de silêncio, luz e, de quebra, uma bebida. Muito perspicaz quem pensou nisso.

- Você namora, minha jovem? - O baixo movimento me fez ficar próxima o suficiente de Sr. Whisky a ponto de poder ouvi-lo alto e claro - Quer dizer, isso não é da minha conta.

- Sem problemas - Sorri de canto, quem sabe ele peça mais uma ou duas ou três doses, minha gorjeta é sempre maior - Não, não namoro, na verdade moro nesse lado da cidade tem pouco tempo.

- É? - Ele terminou o primeiro drinque - E morava onde antes?

- Zona Oeste - Uma olhada rápida para o copo onde os gelos derretiam solitários - Mais um?

- Boa pedida, mais um - Enquanto preparava mais uma dose Sr. Whisky voltava a olhar para a pista de forma saudosista - Se eu tivesse dois casamentos, três filhos e uns trinta anos a menos eu estaria ali no meio.

- A pista não vê idade - Servi a bebida - Além do mais, hoje em dia não há mais diferenças entre as gerações.

- De certa forma você está certa - Ele bebeu um gole farto, segurando a bebida dentro da boca alguns instantes - Mas hoje é só o drinque mesmo, não consigo entender essa música de hoje.

- Nem nós entendemos.

Rimos enquanto sr. Whisky bebia mais um gole. A julgar pelo anel devia estar casado no segundo casamento. Três filhos, dois do primeiro casamento, provavelmente adolescentes e um do casamento atual, usado para criar um vínculo para manter o casal unido. Provavelmente na casa dos cinquenta, talvez cinquenta e cinco, não mais que isso. Provavelmente trabalhava em uma das transnacionais que ficavam no bairro vizinho. O salário do mês dele deveria ser o meu do ano. Mérito dele, escolheu um curso melhor que psicologia e mixologia. O último gole foi bebido de forma integral, uma das pedras de gelo não voltou ao copo. Uma nota de cinquenta reais saiu do bolso dele parando dobrada ao lado do copo com um sorriso fino e uma piscada. Sr. Whisky generoso. As duas doses de bebida deveriam sair pouco mais que o valor da gorjeta. Tão logo parou em meu balcão saiu, levando consigo o vento frio.

domingo, 6 de março de 2022

Esperança

Grigory soltou grande lufada de ar enquanto abria os olhos de súbito se sentando e vendo, em sua frente, Irina que tinha entre o polegar e o indicador uma xícara que ele julgou ser café pelo cheiro.

- Não consigo dormir.

- É pelo cheiro de café?

- Não, esse cheiro traz uma paz, o problema é... diferente.

- Diferente... como? - Irina arqueou a sobrancelha enquanto bebericava mais um gole da bebida escura como a noite que cruzavam - É pelos...

- Sim, cada vez que passamos por um poste, um carro parado em uma passagem de nível, cada vez que um clarão invade a cabine passa um filme pela minha cabeça, fora esse som das rodas...

- O trem não foi uma boa escolha, afinal.

- O problema, Irina, não é o trem, sou eu.

- O único problema aqui, Grigory, é você achar que é o problema.

- Mas não sou?

- De maneira nenhuma - Ela bebeu mais um largo gole de café - Não fosse por você metade das pessoas nesse trem ainda estaria presa... ou pior - Vendo o olhar de Grigory descendo ela resolveu intervir colocando a mão no queixo dele - E eu não teria conhecido o amor da minha vida.

- Mas...

- Sem mas - Ela calou ele com a ponta dos dedos e, dando um passo adiante selou seus lábios nos dele - Se quiser café, podemos conversar até chegar em Lviv...

- Não, você vai querer descansar.

- Não, até estar fora daqui eu não vou querer pregar o olho.

- Se importa se eu não falar nada...? - Ele a olhou nos olhos temendo a reprimenda - Quero dizer...

- Não, de forma nenhuma.

- Eu só quero pedir uma coisa... se não for incomodo.

- Claro.

- Promete não rir?

- Fala logo - Irina tinha no semblante uma expressão que aparentava dureza, porém trazia no olhar uma doçura que Grigory não via faziam anos - Se for café eu posso pedir outro, o rapaz passa aqui de dez em dez minutos e...

- Não - Ele ruborizou a interrompendo - Eu só quero... que você segure minha mão, quer dizer, se isso parecer estranho.

Sem falar nada Irina tomou a mão de Grigory na sua dando, em seguida, um beijo suave e sentando-se ao seu lado. Ela não conseguia mensurar os horrores que ele havia passado, as coisas que devia ter feito para cumprir suas missões, se manter vivo e chegar até ali. Por mais que pudesse parecer uma novela publicada em jornal, ela, realmente, se apaixonou por ele no primeiro instante que o viu, ainda paramentado com a farda completa e a PPD-40 parcialmente suja de lama, assim como ele inteiro.

Enquanto sentia a mão dele apertar a sua se lembrava do local onde estavam quando soou o alarme, a casa de seus avós que era abrigo para duas dúzias de pessoas. Entre o som da primeira explosão e a habilidade dele em empurrar todos para a minúscula despensa que havia sido construída com pedras mais de uma centena de anos atrás. Ele era o último para entrar quando o clarão se fez na casa. Todos os tímpanos com o zumbido que persistiram por semanas a fio.

Porém com Grigory a sequela foi pior. Sua perna esquerda completamente dilacerada agora era uma poça de sangue, poeira e pólvora. Tão logo o bombardeio cessou médicos e enfermeiras passaram por ali. Foi um mês de muita morfina e lágrimas que acabaram com as chances dele voltar ao front. Não poderia ser em melhor hora, afinal, informações ainda desencontradas diziam que Berlim havia caído e a rendição era questão de dias.

Distantes ainda centenas de quilômetros de seu destino e, com os primeiros raios de sol rompendo o horizonte, a mão de Grigory amoleceu de súbito fazendo o coração de Irina parar por um instante, tempo suficiente para que ela o visse cair no sono com uma lágrima rolando pela face e um sorriso nos lábios. A esperança ganhava forma a cada vila não bombardeada que o trem parava e pessoas desembarcavam reencontrando entes queridos na estação. Pousando o rosto no ombro dele, ela se permitiu cochilar também e sonhar com dias melhores adiante. A paz vinha com a luz de um novo tempo, de um novo dia.

sábado, 20 de novembro de 2021

Aos 34

 E aqui estamos nós para aquela postagem que vai acontecer haja o que hajar, afinal é uma das poucas tradições ainda em pé nesse quase moribundo espaço.


Sei que não postei absolutamente nada esse ano além da ode aos anos de Itajaí, mas não quer dizer que eu parei de escrever ou entrei em um hitato imenso, longe disso, eu apenas... não ando com saco de compartilhar muita coisa que escrevo. Cogitei até dar fim ao blog em algum momento durante o ano mas, felizmente, não o fiz.


Esse ano foi bem estranho em vários aspectos, pra começar eu acabei pegando a doença da moda. Sim, eu tive corona, foi uma experiência bem merda, não cheguei a ir pra hospital nem nada (quer dizer, eu passei pelo posto onde me prescreveram uma penca de remédio que não funciona) e, depois de umas duas semanas eu estava melhor, não é algo que eu deseje pra ninguém.


Ah, antes da covid eu tive um outro revés: meu HD foi para o saco, meu hitachi de 1tb morto... tive que tirar dinheiro do cu e comprar outro HD, felizmente tive ajuda e, bem, foi ótimo porque agora eu tenho um HD mais rápido (coisa pouca, admito, nada muito "woooow que rápido") e que espero durar mais uns anos.


Depois do HD e da Covid tive umas pequenas tretas com os vizinhos barulhentos, mas nada que valha muito mais que algumas linhas, só digo uma coisa: Sal grosso tem muito poder, puta merda. Ah, e eu também tive que parar a terapia por falta de dinheiros e... enfim. Vida que segue.


Não fiz nenhuma grande custom de carrinhos esse ano porque simplesmente não tive saco. Mas a página dos carrinhos passou de 500 seguidores dia desses, bem interessante ver que eu consigo fazer as coisas "pra fora"... falando nisso, desde que eu aprendi a editar áudio eu montava uns arquivos com uma hora ou mais de um determinado estilo, aí esse ano eu resolvi colocar eles pra voar e isso acabou me inspirando mais e fiz mais algumas e tem mais mixtapes a caminho.


Além disso eu acabei lançando uns outros projetos nas redes que foram: a página no Instagram da Maria Letícia (que é a cachorra que mora aqui em casa), uma página pra postar as fotos de ônibus que tão no meu HD "dormindo" (link) e um outro projetinho que é recém-nascido mas tem um potencialzinho pela frente.


Sinceramente não espero muito do próximo ano, só que ele seja um pouco mais leve do que foi esse, mas mantendo a chama da inspiração acesa, mantendo todos os projetos andando, quem sabe fundando outros... Mas eu, secretamente, torço pra que o ano seja o melhor possível.



ps.: vi agora que faz dez anos que faço esse tipo de texto e.. caraio que doido