quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Orelhão


Pensou em ligar. Do seu celular não podia, ela conhecia o número. Mas onde? Pensou em ir até em casa... não, precisava ligar agora, nesse instante, antes que as palavras voltassem todas para a sua garganta e voltassem a lhe sufocar. O quê diria? Na hora inventa. Não poderia ligar a cobrar - é muito deselegante -, no bolso haviam algumas moedas... vasculhou, vasculhou, inspecionou todo o conteúdo do bolso. Enfim acabou achando uma ficha. 

Tantos anos que não usava telefone público que havia esquecido que as fichas já não eram mais usadas há mais de uma década, aliás, duas. Caminhou até um posto de combustíveis, comprou um cartão telefônico, sem desenho, apenas uma propaganda da operadora, que triste. Não haviam mais aqueles motivos de antigamente, carros, prédios, datas históricas... o mundo não tinha mais tanta coisa lírica. Suspirou colocando o cartão no dito orelhão. Checou o número na agenda do celular... discou. Estava chamando. A respiração se acelerou. "Alô?". Silêncio dele. Fechou os olhos. Sua razão disse, gritou "desligue". Mas o coração não deixou. Balbuciou um oi quando ela já dizia o terceiro "alô" e ameaçava desligar. Falou de uma nuvem que viu, da chuva que molhou aquelas plantas do jardim. Viu o número de unidades no cartão diminuir bruscamente. Parou. Ouviu a respiração dela. Ela ouviu a respiração dele. "Se cuida" ele disse. "Você também" ela respondeu. Diriam mais palavras, mas as unidades do cartão acabaram. Decididamente o mundo moderno não tolera romance, as unidades acabam antes da palavra que ele queria ter dito, mesmo que dolorosamente, ele queria ter dito, agora não teria mais coragem de ligar. Não tão cedo. E aquela palavra ficaria pairando no ar. 

Recolocou o fone no gancho. Tirou o cartão e enfunou na carteira, ao lado de uma nota de vinte reais surrada, os documentos e dois cartões de visita - tinha cortado, literalmente, o cartão de crédito - de algum corretor de imóveis, hotel, loja, vendedor... nem lembrava mais de onde tinha aquilo. O orelhão tocou uma. Coração na boca. O visor mostrava "retire o cartão". Ainda não era aquela vez que diria o tão doloroso, aquela palavra que lhe doía apenas em pensar que existia. Começou a caminhar rápido aos primeiros pingos de chuva.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

As Chaves



Havia deixado as chaves sobre a mesa, aquele chaveiro de bola de bilhar que havia comprado numa feira, anos atrás, demonstrava sinal de tempo e uso constante. As três chaves - portão e portas internas - postadas, abertas como um leque. Não, aquele modo não havia sido proposital. Havia colocado segundos antes de seguir na direção da porta. Demorou, tomou um gole de água frente daquele bebedouro. Tantas vezes bebericou ali depois de noites ardentes. Tantas vezes refrescou o corpo depois de um dia cansativo naquela "bica" e agora estava indo. As chaves estavam sobre a mesa. Respirou fundo e tomou a rua ainda incerto de estar fazendo a coisa certa.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Fechar de Cortinas

Findou-se a peça, as cortinas se fecharam sob os primeiros aplausos da platéia, que, atônita não sabia como se expressar após aqueles mais de vinte atos. Uma peça longa é verdade. Mas ainda assim capaz de arrancar aplausos do público. O ator recuou alguns passos deixando que a cortina e as luzes apagassem. Daqui alguns poucos segundos a cortina voltaria a abrir pro ator agradecer a todos por aquele reconhecimento, por aquele singelo ato de bater a palma de uma mão na outra.

Quando as cortinas abrissem novamente ele daria não mais que quatro passos a frente e se inclinaria, agradecendo, mais uma vez, aquela salva de palmas. As cortinas abriram. O público ainda o aplaudia, agora em pé. Sorriu e fez conforme planejou, os passos, o inclinar... tudo. Ficou alguns segundos agradecendo, deu os mesmos quatro passos, agora para trás e as cortinas novamente se fecharam. As palmas, agora cessavam aos poucos, já podia ouvir as pessoas saindo, lentamente, do teatro. As cortinas fechadas, teatro vazio, as luzes sendo apagadas. Era o fim da peça. Era o fim.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Suspiro

Suspirou ao abrir os olhos. Franziu um pouco a testa ao ver a fresta na cortina do quarto - havia deixado propositalmente ela para as noites não serem tão escuras -, queria dormir mais alguns minutos. Olhou o relógio. Proferiu um palavrão, programou o celular para despertar dali meia hora. Os compromissos que esperem. Não deu bom dia pra ninguem, nem pra si mesmo. Aquela meia volta no relógio passou rápido demais. Era quarta-feira. Ainda faltavam... vejamos... um, dois, três dias para o dia que poderia repor o sono que não conseguiu ter durante a semana. Faziam quase dois meses que não dormia direito. Como se ligasse para isso. De verdade, sempre "cagou" para a propria saúde. Tinha os efeitos agora: tomava remédio todos os dias de manha.

No banheiro viu sua cara de sempre. Pensou em socar o espelho por ser tão cretino e lhe mostrar aquela imagem de si proprio distorcida. Trincou os dentes com raiva de si mesmo. Suspirou novamente abrindo o armarinho e pegando sua escova. Havia outra escova ali. Antes de começar a escovar os dentes resolveu ligar o rádio. As emissoras de FM sempre tocando aquelas mesmas porcarias. Ligou o celular na USB do aparelho. O som de uma guitarra extremamente bem tocada preencheu todo o ambiente. Voltou ao banheiro. Agora sim. Escovou os dentes e voltou a se encarar no espelho. Se deu um tapa na face esquerda e outro na face direita. Guardou sua escova de dentes pegando aquela outra.

Fechou os olhos. Suspirou acelerando a respiração. Mentalmente contou de três até zero e arremessou a escova com cerdas um tanto quanto gastas, cabo rosa com detalhes em branco de alguma marca dessas mais baratas mas não tão ruins. Depois da higiente matinal e daquela "vitória" saiu do banheiro rumando para a cozinha. A guitarra habilidosa lhe fazia absorver como se fosse a energia daquele instante em que a gravação foi feita. Abriu a geladeira, pegou o leite - odiava leite quente -, do armário a xícara e o achcolatado - odiava café, até mesmo o cheiro lhe provocava enjoo. Preparou tudo. Foi até a geladeira guardar o leite e achou a garrafa de vodka pela metade - nunca foi de beber até cair, não seria agora que caíria nessa besteira -, a pegou - ou seria? -, abriu - seria mesmo capaz disso? -, colocou o correspondende a menos de uma dose dentro da xícara com o achocolatado.

Devolveu a garrafa à geladeira. Mexeu tudo com o cabo da colher que havia usado para pegar o achocolatado. Bebeu tudo em um gole só. Por um instante se lembrou do aniversário de um amigo na época de escola onde haviam vários tipos de bebidas suavemente alcoolicas - batidas - e que era menor de idade naquele ano. Os avós do seu amigo nem ligavam para isso. Suspirou

ao colocar a xícara na pia já a enchendo completamente de água. Agora sim seu dia podia começar. Voltou ao quarto, olhou a cama bagunçada. Não havia necessidade de arrumar. Caminhou descalço até a sala, onde havia largado os sapatos na noite anterior, sentiu a sujeira do chão grudar na sola de seus pés. Na volta tinha de limpar essa casa. Olhou em volta. Olhou para as paredes - amarelas - e não pensou em nada. Achou estranho pensar em "nada, absolutamente nada". Acabou sorrindo de canto com isso. Foi até o rádio e o desligou retirando dali o celular já o colocando no bolso.

Ganhou a rua depois de trancar a porta da frente. Jogou as chaves no exato bolso oposto ao que havia colocado o celular - evitava que as chaves riscassem mais a já riscada tela do pequeno aparelho -, passou o portão. Na rua colocou os fones e buscou a mesma música que tocava no instante que desligou o aparelho dentro de casa. Suspirou praguejando, mentalmente, a empresa que fez o celular. Por que as listas não estavam perfeitamente organizadas? Proferiu um palavrão mentalmente. Enfim achou a música que procurava. Acelerou o passo.

Cumpriu suas atividades diarias. Já era fim de tarde. Já estava no caminho de casa quando pensou que não haviam motivos para ter pressa de chegar. Ninguem lhe esperava e os programas que gostava de fazer a noite - comer, tomar banho, jogar video game, caçar algum programa interessante na televisão - não tinham horario para iniciar - porém tinham para acabar. Se

lembrou. Havia um motivo para o passo rápido: tinha de fazer faxina na casa. Ótimo. Um objetivo. Entrou em casa já jogando a pasta de trabalho para um lado, reconectando o celular ao rádio e dando inicio à limpeza. Ao fim dela, viu a casa limpa. Sorriu satisfeito e suspirou, agora cansado. Fez o habitué e o dia acabou, foi até a cama e dormiu como a muito tempo gostaria de dormir. Tranquilo.