domingo, 23 de setembro de 2012

Homem Bagre - O inicio

Era uma sexta-feira, não era a sexta-feira 13 que todos temiam, nem ao menos havia uma lua cheia no céu que justificasse o ar sombrio. Ocorre que, durante as madrugadas, uma fina neblina se levantava do rio e cobria a parte mais baixa da cidade, quem olhasse das partes mais altas e não soubesse que ali haviam algumas casas, comércios e ruas dificilmente diria existir algo ali embaixo. Ele tinha perdido o emprego, morava sozinho, vivia sozinho haviam anos e anos. O retorno pra casa aquela noite se deu lento, faltavam segundos para a meia noite quando parou no meio da ponte entre o centro de a Ilha de Valadares. Suspirou longamente. Quantos sentiriam sua falta? Talvez um ou outro. Talvez ninguem. Subiu ao parapeito da ponte, ninguem vinha de lado nenhum. O rio estava calmo, a cidade silenciosa. Pendeu o corpo pra frente e deixou-se cair naquele rio.

Abriu os olhos. O sol forçava passagem por entre as frestas da janela. Se ergueu olhando em volta. Estava em um lugar que nunca estivera. Tinha morrido? Será que essa era a sua versão do céu? Ou, quem sabe, do seu inferno? Ouviu uma porta ranger atrás de si.

- Então já acordou... como se sente? - Quem era aquele? Como ele ousava lhe dirigir a palavra? - Te fiz uma pergunta rapaz, não lhe ensinaram que é falta de educação não responder os mais velhos?

- Tem razão... - a educação que havia recebido de seus falecidos pais tinha sido esmerada - ... estou melhor, mas...

- Onde está? - O velho se antecipou. - Uma pequena ilha fora dos mapas.

- Como eu vim parar aqui?

- Digamos que... o mar foi gentil com você e lhe trouxe até aqui.

- O mar? Como assim? - cada vez que o homem falava o rapaz parecia mais e mais confuso. - Quem é o senhor?

O homem sorriu de canto. Meneou a cabeça lateralmente uma ou duas vezes, foi quando o inimaginavel atravessou a porta: uma especie de criatura humanoide cinza, com pele brilhante.

- Não vai acreditar de primeira, mas... - o homem fez uma pausa - ... eu fui escolhido para encontrar um substituto depois de 140 anos para ele...

- Ele quem?

- O homem bagre.

Dito isso o senhor se retirou deixando a criatura que, a retina do rapaz se acostumando com a luz, fez notar que era apenas um cabide com rodas e um motor pequeno, parecido com desses carrinhos de controle remoto. O rapaz tocou aquele tecido, sentiu vertigem, sede, fome, todos as sensações possiveis ao mesmo tempo e, não aguentando tal carga de sensações, desmaiou.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Há males

O cabelo curto não era opção, mas era o menor dos males depois de tudo que ocorreu nos últimos meses. As cirurgias, as sessões de quimioterapia, de radioterapia. Para Raquel a vida, realmente, começava aos 40. Na verdade aos 42, já que aos 40 ela praticamente acabou com a descoberta, em um exame de rotina, de um cancer em estágio avançado em seu ovário direito. Poderia ser tirado, porém haveriam sequelas, ela não poderia mais ter filhos. Já tinha um, Felipe, com 14 anos. Seu marido a apoiou o quanto conseguiu... mas a tensão daquele tratamento todo acabou com ele. Acabou com o casamento de 28 anos. Quase acabou com tudo. Algumas semanas depois do inicio das sessões o vistoso e longo cabelo encaracolado de Raquel começava a cair, num rompante ela pediu que raspassem tudo de uma vez. Melhor assim. O esparadrapo tirado de uma vez só doi menos. O tratamento durou dois longos anos. O marido se foi, o filho estava sempre perto. Algumas amigas se afastaram, outras deram a força que ela precisava para superar. Ao fim notou numa manha de sábado os cabelos voltando com força. Os primeiros cachos, as primeiras "molinhas" surgiam em todos os cantos do couro cabeludo. Estava, enfim, curada. Numa consulta de rotina conheceu o pai do seu filho mais novo, Rafael. Que agora tinha pouco menos de seis meses. Lembrou-se de uma frase de sua mãe enquanto caminhava pela rua e pensava em tudo que havia passado: Há males que vem para o bem.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Lembranças


As lembranças encrustradas naquelas paredes, naquele ambiente... quantos beijos haviam sido dados entre aquelas colunas? Quantas horas conversando as mesmas banalidades, as coisas sérias, discutindo onde morariam, os sonhos, os desejos, os medos... agora tudo estava abandonado. Alguns anos se passaram desde os dias que estiveram ali, o prédio - seu antigo colégio - agora estava praticamente abandonado. Diziam que seria demolido para construção de uma escola mais moderna. Crueldade. Deviam haver leis que proibissem locais com lembranças de serem demolidos. Claro que as lembranças não seriam apagadas, mas... ainda assim era cruel. Pensou em protestar, se acorrentar nas colunas com uma placa ao pescoço "salvem minhas lembranças!", faria greve de fome, passaria dias e dias sem comer afim de chocar e comover a opinião pública, atrair a imprensa, fazer um alvoroço jamais visto! Tudo para preservar as suas lembranças! Muito provavelmente outras pessoas, recordando de suas lembranças se uniriam a causa, se acorrentariam, fariam abaixos-assinados, protestos, interditariam ruas, campanhas em redes sociais... não. Espere. Sorriu batendo na propria testa. Como era tolo. As lembranças vão estar sempre em um lugar que nao pode ser demolido, que não pode ter outro prédio construído... as lembranças, aquelas que marcaram, aquelas que são para sempre, vão estar onde nada nem ninguem vai tirar. Elas vão estar sempre no coração.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Estante


Do sofá observava os livros na estante. Quais já teria lido? Praticamente todos do seu interesse. Muitos não havia comprado, havia recebido de herança ou roubado de alguem, ou, ainda, emprestado de alguem que nunca reclamou a devolução do mesmo. Se levantou, dedilhando com a ponta dos dedos as lombadas dos livros pensava em qual leria. Os que lhe interessavam já tinha lido. Fez o minimo movimento de olhos procurando alguma coisa... não sabia ao certo o que queria. Só sabia que queria algum livro para tira-lo dali, lhe levar para outra realidade, outro mundo, outra esfera, outra galáxia.

Não era fácil lutar contra os seus pensamentos, fossem eles quentes, frios ou mornos. Fossem eles doces, amargos, salgados... salgados, quentes... pensar naquelas palavras trazia mais lembranças do que podia suportar. Um livro, rápido. Poe. Sempre boa companhia. Não, hoje não. Livros juridicos, livretos curtos de poesia. A clássica enciclopédia - que não era a Barsa - postada ao canto da estante. Em frente dos livros algumas lembranças de viagens. Bahia. Praias... sempre os sorrisos lindos. Sempre aquela época alegre, aqueles sorrisos. Sempre eles. Onde estava o Poe mesmo? As tragedias dele eram o que precisava naquela noite. Puxou o livro da estante e saiu dali. Foi para o quarto. Cobertas. Luz do abajur. Livro. Ler. Viajar. Dormir.