quarta-feira, 19 de junho de 2013

Miragem do deserto

Saiu do bar, mais uma vez tinha recorrido àquela mistura alucinante e enebriante de tequila e whisky. Não ligava se as duas bebidas não combinavam. Era a sua bebida, era o que havia bebido em todos os bares ao longo dessa estrada, dessa rodovia que a muito não via um grande trânsito de veículos intenso. O deserto só não tomava conta dela completamente porque vez por outra passava algum motociclista que, assim como ele, buscava algo. Algo que nunca saberia ao cereto o quê era ou onde estava. A cada parada um bar. E a cada bar a mesma bebida que causava estranheza em barmans até experientes que já diziam ter visto de tudo.

A cada parada cidade uma nova jovem caía em seus encantos. Aprendia a gostar de uma nova bebida e acabava lhe dava algo precioso, que nem mesmo ela tinha consciência da importancia que tinha. Ele, porém, tinha total consciência do que estava fazendo e, apesar do tempo que já fazia isso, sempre sorria ao ver que mais uma havia caído em suas presas, que mais uma havia caído em seus encantos. Se entregavam a uma noite completa, daquelas de fazer as paredes dos pequenos - e nem sempre bem cuidados - motéis de beira de estrada tremerem ante a fúria de ambos. Adormeciam com os desejos da bela em ir embora com o estranho, como se ele fosse seu salvador de uma vida pacata e entediante naquela pequena cidade de beira de estrada.

Quando a moça, completamente extasiada e satisfeita da noite que havia tido com um completo estranho acordava, muitas vezes na tarde do dia seguinte, não o via. Procurava no banheiro. Quando a hospedagem dispunha de tal aparato interfonava à recepção. O procurava pelo corredor até chegar ao fim dele, de fronte para a saída, quase sempre trajando roupas menores. Muitas vezes o proprio lençol da cama fazia-se de vestes à elas. Quando estavam diante do estranho ele já não as podia ouvir mais. Agora elas apenas podiam ouvir o ronco da motocicleta arrancar e desaparecer naquela reta infinita, desaparecendo aos poucos, como uma miragem no deserto.

sábado, 1 de junho de 2013

chuva

Seguia com a faca nas mãos, apesar do corpo ao seu pé já estar completamente sem vida. Olhou as mãos. Sangue. Muito sangue. Não pensou em absolutamente nada além do quão havia descido. Podia tentar limpar as mãos, mas o máximo que conseguiria era tirar o sangue da superficie da mão. Não poderia tirar da memória os nuances da briga. Da batalha que fez para manter a sua vida como sempre esteve. O beco ocultaria o corpo por algumas horas. Com sorte dias.

Do céu pendia uma fina garoa que poderia, facilmente, lavar as evidências mais grosseiras. Com mais sorte a chuva se tornaria uma tempestade e levaria toda e qualquer evidência. Em um bar desses com mesa de bilhar no meio, balcão onde homens disputavam as poucas putas que lá trabalhavam e algumas mesas mais reservadas em um dos cantos viu a oportunidade. Um banheiro. Lavou as mãos o máximo que pode. E o quê faria com a faca dentro da blusa? Não haviam rios próximos. Limpou o cabo da mesma e seguiu na direção dos sanitários. Depois de uma bela mijada olhou em volta. Na cabine ao lado havia outro homem. Mais uma vitma? Não. Não hoje.

Se deu conta ao ouvir a descarga vindo do seu companheiro de banheiro que haviam caixas d´água. Dessas pequenas que não são mais tão comuns. A sorte começava a sorrir diferente. Com um sorriso lascivo, ácido. Limpou o cabo e deixou a faca ali dentro. Deu a descarga e ficou alguns instantes vendo o adoravel jato que enchia a caixa novamente praticamente lavar a faca. Ótimo.

Voltou ao bar. Alguem havia ligado a jukebox que não tinha sido percebida. Um espaço no balcão e já pediu um cowboy. E outro. E mais um. Pagou. Na saída, no exato instante que recebeu o troco da bebida calculou que não seria nada mal pedir mais uma dose e colocar alguma música para quem estivesse por perto ouvir. Muitas músicas novas. Era uma jukebox com aparência antiga, mas uma tela de toque. Modernidade interessante. Pediu mais uma dose. Escolheu uma música que combinou com seu estado atual. Arrumou a gola do sobretudo. Virou a última dose. Agradeceu e saiu.

A chuva havia ganhado corpo. Agora estava forte o suficiente para lavar as evidências. O sorriso da sorte se alargou nesse instante. Da aba do chapéu se esquivava dos grossos pingos de chuva. Passou em frente ao beco. Seguia escuro, frio e melancolico. Igual havia deixado minutos atrás. As mãos no bolso davam a segurança que precisava manter daqui em diante. Não poderia se deixar levar pelos pensamentos de que havia matado novamente. Suspirou movendo os ombros para cima. Quanto ainda tinha no bolso? O suficiente.

Chamou um taxi na esquina seguinte. A última viagem da noite, disse o taxista. Endereço dado, minutos até o veículo amarelo com uma faixa azulada estacionar diante do pequeno prédio de fachada gasta pelos anos de negligência na manutenção. Sorriu dando uma pequena olhada para cima. Praticamente todas as luzes apagadas. Pagou o taxista e o aguardou virar a esquina. Adentrou no velho edifício. Subiu as escadas com os sapatos de um couro rangendo a cada passo e tentando expulsar a absurda quantidade de água que havia acumulado durante o seu passeio. Sétimo andar. Essa era uma das poucas coisas que odiava aqui: não havia um elevador. Muito embora em uma edificação com esta idade natural que não existisse mesmo. Caminhou pelo corredor vasculhando os bolsos atrás das chaves. Destrancou a porta. Antes do primeiro passo sentiu o solavanco lhe empurrando para trás. Viu as luzes automáticas do corredor - única tecnologia mais atual instalada por aqui - se apagarem para, logo em seguida, se acenderem novamente. Passos cadênciados. Sapato social. Estava no chão quando viu de relance, descendo as escadas com uma carabina num dos ombros e uma maçã na mão oposta ao ombro. A luz se apagou no instante em que uma das portas dos apartamentos vizinhos ao seu se abriu. De lá vinha a mesma música que havia ligado no bar. E a voz na canção era a mesma que ecoou nos seus instantes finais. God is dead? God is dead?