sábado, 21 de setembro de 2013

Maré

Era estranho como os dias passavam praticamente sem nenhuma alteração. Para ele os dias, as sensações, todas as coisas estavam paradas. O novo porta-retratos na estante da sala brilhava quase sem poeira, a foto ainda era dele, mas agora era com a pianista em frente ao mar. Depois daquele dia bebendo vinho. Tinha sido doloroso aquilo de tirar a foto dela dali da sala. Ainda que não tivesse tirado completamente a foto dela de suas vistas. Ela estava em sua mesa de trabalho, onde repousavam diversos livros abertos, lidos pela metade, desenhos pela metade, alguns CDs, carrinhos de coleção... aquela bagunça era ele. E aquele olhar dela por sobre a bagunça era a desaprovação a isso tudo. Talvez por isso que ele não arrumava nada, queria afrontar, queria pirraçar como uma criança que não ganha o brinquedo que queria. Talvez por isso que ele e a pianista não se falavam haviam dias, a moça não sabia como reverter a situação a seu favor e optou por se afastar... esse era o destino dele afinal, ficar sozinho. Suspirou tirando alguns papeis para o lado.

Dois envelopes que havia pego na caixa de correio mais cedo ainda esperavam para serem abertos. Uma conta e um envelope daqueles comuns, que se compra em papelaria e tem aquela borda mesclando verde e amarelo. A chuva havia borrado o destinatário, borrado apenas o nome, ainda podia ver partes do endereço. Com o estilete abriu tomando cuidado para não estragar a carta. Letra bonita. Palavras bonitas que levaram ele às lágrimas, não só pelo escrito, mas pela carta, papel, físico, algo além da efemeridade de e-mails, mensagens de celular... ao fim a assinatura era da pianista e o "p.s." pedia que ele enviasse mensagem de texto quando precisasse. Ele sorriu ao fim da carta curta, escrita em uma página dessas com muitas linhas pequenas, onde se escrevem partituras. Deixou o papel sobre a mesa e foi para a laje, apenas com a gaita de boca.

Tentava tocar alguma coisa, qualquer coisa. Era impossivel, era como se o pouco dom de música que tinha tivesse fugido dele e ido embora, talvez para sempre. Que merda. Quando tomou o celular nas mãos afim de pedir ajuda o portão se abriu. Ficou em silêncio deixando a visita que o encontrasse. No fundo ele queria que fosse... fosse... quem ele queria que fosse? Ela? A pianista? A prima? E se fosse um bandido que notou a porta aberta e resolveu tentar a sorte? Esperou dois minutos, contados no visor do celular. Ninguem veio até a laje, o que era habitual, afinal todo mundo que o conhecia sabia que, se ele não estivesse dentro de casa, com a porta dos fundos aberta, ele estaria na laje.

Desceu temendo encontrar alguem armado. A pequena casa com as cortinas fechadas, as luzes apagadas, o escuro dominava o ambiente. Se já tinha algum receio de encontrar alguem mal encarado, violento, criminoso seu temor aumentou. Com o celular em mãos digitou o número de emergência ainda sem discar. Ouviu um barulho vindo da sala. Caminhou a passos temerarios, lembrou de filmes americanos em que sempre surgia um taco de beisebol na mão do mocinho e ele se livrava de qualquer marginal. Havia um pequeno brilho naquele ambiente, parecia o crepitar de uma vela. Se aproximou com o dedo sobre o botão de discar para a emergência. Seu temor, seu até medo se tornou um sorriso fino que se prolongou por toda a extensão possivel de seus lábios.

Era a pianista, um violão no colo, sentada sobre o tapete e uma vela dessas com cheiro de flor de laranja em frente dela. Ele se sentou ao lado dela, o dia ameaçava chover, as nuvens haviam rondado o dia inteiro, era inevitavel que viesse a tempestade. Conversaram alguns minutos e as luzes da cidade ao redor da casa invadiram a janela e o comodo, apesar das cortinas. O som de água caindo no telhado com força, os raios seguidos de trovões anunciavam que perduraria aquela situação. Foi no instante que ela começou a dedilhar uma música e anunciar que era para ele a energia eletrica acabou deixando tudo ao redor escuro, as ruas, o rádio do vizinho, as casas, as televisões... apenas aquela vela os iluminava. Foi então que ela dedilhou cantando em tom baixo, suavemente rouco sem ser sensual, quase numa confissão e a música caiu como uma onda de maré alta quebrando na praia, tamanho o estrondo que fez nele. Cantaram juntos muitas outras músicas, mas aquela primeira música ficou presa à mente dele. E provavelmente da pianista também quando ela a ouviu e soube que era para ele.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Bebendo Vinho

Não seria a primeira garrafa de vinho que morria em suas mãos. Não seria, muito menos, a última. Mas era a primeira que descia com tanta... facilidade? Devia ser. Sinal de que o figado estava cada vez mais amaciado, cada vez mais sereno. Tinha coisas a fazer, mas hoje ignoraria todas elas e dormiria com o celular desligado, telefone fora da parede, despertador sem as pilhas. Só não desligou a chave geral da casa por não querer comida estragada na geladeira. Se afundou nas cobertas e deixou que o porre fizesse o trabalho por ele. Dormir sem se preocupar com o dia seguinte. E como dormiu. Doze horas depois acordou sem dor de cabeça. O corpo todo relaxado. Tomou um banho demorado e religou o celular enquanto preparava uma bela xícara de leite com achocolatado.

Duas ligações e meia dúzia de mensagens. Primeiro as mensagens. Propaganda da operadora, um boa noite de alguem que morava extremamente longe e um convite. Nas ligações o mesmo número, repetido. A mensagem mais recente era a reclamação do número das chamadas perdidas "não vai atender ou não pode? Preciso te ver, assim que puder, me liga, beijos.". Bebeu um gole do achocolatado gelado - odiava beber isso quente, lembrava de coisas ruins da infância, coisas que siquer lembrava, mas sabia que tinham sido ruins - pensando se deveria responder. Na mesa uma moeda de cinquenta centavos - o troco pela garrafa de vinho - lhe deixava com a ideia de tirar na sorte se responderia ou não. Alea jacta est. Lançou a moeda ao ar. Sorriu de canto. A moeda parecia saber o quê ele desejava fazer. Ela devia saber o quê ele planejava. Bom ser compreendido. Respondeu a mensagem com um "amanha, na praia, fim de tarde, leve o violão que levo a gaita.".

Amanha. Porque hoje tinha uma coisa mais importante a fazer. Comeu um qualquer coisa na geladeira, colocou a jaqueta de couro, pegou o capacete, a moto e subiu a serra. Podia ir de olhos fechados que chegaria ao objetivo. Ao longe pode ver a fachada na cor salmão surgir no horizonte. A poluição daqui era terrivel e, no trajeto ate relativamente curto entre a rodovia e aquele prédio, já havia espirrado três vezes. Na mochila tinha remédio pra isso. Resolveu não tomar. Que se foda. Estacionou diante da padaria. Comeu um queijo quente e um pão de queijo. Respirou fundo e adentrou no edifício. O porteiro por um instante estranhou ele ali justamente quando ela não estava mas sabia que ele vinha às vezes quando ela não estava.

Subiu o elevador e, ao chegar no andar, notou a única porta com tapete. Aquele tapete que não queria ser usado como capacho. Na caixa da mangueira de incêndio a chave ainda estava lá. Coberta por uma fina camada de poeira tamanho a falta de uso ou de alguem pega-la nas mãos. Destrancou a porta e tudo estava praticamente igual. O sofá estava mais para o lado e a TV mais para o canto. Pensou em escrever uma carta... não. Chega de cartas. Merda. Estava conflitante consigo mesmo.

Acabou escrevendo uma pequena carta e a deixou sobre a mesa. Deixou o chaveiro da chave que havia usado sobre a carta, o lápis que havia escrito junto. Olhou em volta. Suspirou dando uma olhada rápida na foto dela que lhe encarava. Ele não tinha reação ao vê-la. Se levantou e deixou o papel ali. Ao sair evitou pisar no tapete afim de não suja-lo com seu calçado sujo. Trancou a porta e suspirou novamente. Da mochila tirou uma pequena caixa, dessas de aliança. Desceu colocando a chave dentro dela. Ao passar pelo hall deixou com o porteiro a caixa e disse à ele que entregasse nas mãos dela. Feito isso voltou à padaria. Comprou uma coca-cola em garrafa e seis pães. Sua janta estava pronta. Subiu na motocicleta se despedindo mentalmente dali. Ganhou a estrada, o ar limpo fez seus pulmões respirarem aliviados, um certo alivio pelo ar poluído da cidade. A estrada era pra onde apontava o guidão. Sem rumo, sem destino e sem pressa alguma em chegar ao futuro.