quinta-feira, 20 de novembro de 2014

os 27

Enfim cheguei nessa idade "maldita", não que eu acredite nisso e não que esse seja o melhor método de se iniciar uma crônica aqui, mas, é inegavel que muitos gênios morreram aos vinte e sete anos. Claro que eu ainda não estou no patamar de gênio, mas... enfim. Vamos começar? Hoje nem é meu aniversário ainda, eu acabei de fazer um trabalho de faculdade e estava aqui relendo as crônicas de aniversário que escrevo desde os vinte e quatro. Curioso como meu estilo de escrever mudou (penso que melhorou um pouco, apesar de ficar um pouco mais enigmatico) e eu acabei mudando também.

Se, aos vinte e quatro, eu já achava o máximo ter chegado até ali (quer reler? Clica aqui), aos vinte e cinco eu já achava incrivel ter "um quarto de século" (ficou curioso? Leia ) e aos vinte e seis eu demonstrava estar relativamente tenso ao que poderia vir pela frente (já que já leu os outros, lê mais esse), hoje, quatro dias antes de chegar aos vinte e sete eu me sinto tranquilo. Não estou nadando em um mar de rosas, mas, sinto que as coisas começam a ficar interessantes.

Esse blog, se a definição de blog é "servir como diário" eu fujo completamente disso pois eu raramente acabo falando de mim na primeira pessoa ou me colocando como personagem de crônica nesse universo. O normal aqui é ter histórias que se passam em um outro universo, paralelo ao nosso, que acabo compartilhando com outras excelentes escritoras (A Bell, a Iza, além, de, é claro da Thata e da Jéssica, com quem divido o blog que gosto de chamar, carinhosamente, de "projeto cartas") onde acabo escondendo devaneios meus, desejos secretos e algumas coisas que não admitiria nem sob tortura haha.

Acontece que esse ano que passou foi um ano repleto de coisas novas. A começar pela prova do vestibular que eu dizia que faria no "os 26": fiz e passei. Agora sou estudante de Publicidade e Propaganda. Acho incrivel ir pra faculdade todos os dias... e o mais legal: eu vou com ela, a minha inseparável Eleanor (que, se você não conhece, leitor, é minha bicicleta, que é mais que uma bicicleta, ela é algo maior... não sei explicar, não em palavras) ouvindo música no volume máximo. No mês de setembro desse ano aconteceu algo que eu queria que acontecesse mas não esperava que fosse acontecer: consegui um estágio remunerado na propria faculdade. Não vou falar que agora estou nadando em dinheiro, mas agora algumas coisas vão começar a melhorar. Não que eu me importe tanto com dinheiro, longe disso, ainda quero tentar um dia não ter essa coisa de "adoração à matéria". Longo caminho até lá, né?

Como sempre acontece enquanto escrevo, eu estou ouvindo música (agora a pouco era de duas bandas ucrânianas que recomendo: Mad Heads XXL e Ot Vinta, ambas eu, como descendente de ucrânianos entendo meia dúzia de palavras, mas o som e os clipes são legais) e liguei no aleatório pra ver se eu tinha uma música pra semi-encerrar a postagem. Acabei achando uma, que vou por um trechinho da letra e o link pra tradução ali no fim, porém quero aproveitar essa "janela" desse universo no blog pra agradecer todos que dividem essa coisa chamada existência comigo, que compartilham seu tempo comigo. Não vou nomear ninguem pois minha memória nunca foi boa com nomes, logo posso esquecer de alguem. Mas, quero agradecer sobretudo aos meus pais, por estarem sempre comigo independente do que acontece. Aos meus amigos fiéis, que são poucos, mas, são fiéis e, claro, aos meus amigos de data recente. A galera da faculdade, claro. Obrigado por tudo, viu, pessoas da minha vida?! De coração. Obrigado. E, como não pode faltar, vou encerrar com o "mantra" de todos os anos: que os vinte e sete sejam vinte e sete vezes melhor do que foram os vinte e seis.

Agora a música:

Ya estoy en la mitad de esta carretera (Eu estou no meio desta estrada)
Tantas encrucijadas quedan detrás (Tantas encruzilhadas ficaram para trás)
Ya está en el aire girando mi moneda (E no ar minha moeda está girando)
Y que sea lo que (E o que tiver que ser)
Sea (Será)

♫♪♫ Jorge Drexler - Sea ♫♪♫

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Sábado

Os instantes que ela veio caminhando até ele foram em camera lenta, não aquela clássica, o slow motion puro e simples. Era aquela super camera lenta. E, ainda assim, cada passo dela pela calçada até vê-lo e abrir o portão duraram não mais do que dez segundos. Dois segundos, no máximo, foi o tempo que se encararam enquanto ela, deliberadamente e sem falar uma só palavra o puxou para dentro.

Se encararam por longos minutos. Ela o arrastou para a cozinha enquanto do armário pegava outra xícara e colocava aquele café que, segundo ele, tinha cheiro ruim. Conversaram algumas amenidades durante o trajeto dela colocando outra xícara e buscando no fundo do armário o achocolatado. Uma rápida olhada afim de ver se não estava vencido. Não estava.

Dado o primeiro gole no leite gelado com achocolatado ele respirou fundo e falou. Falou. Falou e falou. Ela, num raro momento de quietude, apenas ouviu. Quando ele cessou a fala o silêncio imperou por um longo período. Mais precisamente trinta e oito minutos. Foi quando os lábios dela separaram e ela falou também. E assim passaram o dia falando, ora um, ora outro. Tal qual um debate político, mas, ao contrario dos debates, não havia mediador, até porque não haviam agressões. Eram mais confissões que outras coisas.

Ela puxou algumas coisas da geladeira e um almoço foi se desenhando, ele não sentia vontade de ir e ela também não queria que ele fosse, logo ele estava com um avental ajudando com a refeição. Ele se ausentou da casa minutos antes da mesa ser posta. Foi até ao pequeno mercado que havia visto um quarteirão atrás, comprou uma coca gelada e um pote de sorvete. Voltou e os pratos estavam na mesa, ela sorriu ao ver o sorvete e orientou que ele colocasse no freezer, pois o calor rapidinho transformaria-o em liquido.

O dia correu rápido e a noite chegou com o trânsito diminuindo, sendo trocado por alguns carros tocando música alta que vez por outra passavam e irritavam ela, desacostumada com esse barulho. A ele cabia apenas rir daquela atitude dela. Logo ela acabava rindo também e os olhos se cruzavam. E naquele cruzamento ocular mil coisas passavam diante deles e, como se não bastasse, outras mil palavras eram trocadas em milésimos de segundo.

Para o jantar a preguiça abateu e pediram uma pizza. Do alto de um armário ela tirou uma garrafa de vinho tinto, português. Deveria ser bem velho, pois o rotulo já tinha marcas amareladas que só o tempo é capaz de fazer. Na mesa a pizza, as duas taças e a garrafa de vinho os separavam. Bastou pouco, meia pizza e duas taças de vinho e já estavam mais próximos. Foi quando aconteceu. O toque. Tocaram as mãos na hora de tirar a caixa de pizza dali. O arrepio foi mútuo. Logo as mãos acabaram se entrelaçando. E o arrepio foi maior. Antes que pudessem falar qualquer palavra as cabeças se aproximaram, os olhos distantes não mais que duas dúzias de centímetros. O arrepio agora era maior do que qualquer outro. Quanto o arrepio chegou ao ápice ambos tomaram a iniciativa e os lábios se tocaram. Apenas se tocaram.

O relógio pequeno, em forma de borboleta, que ele havia dado para ela, anos atrás, martelava os segundos como uma talhadeira esculpindo pedra. Os olhos entre-abertos. Os lábios unidos. Quando ameaçaram iniciar o beijo foram para o mesmo lado, acabaram sorrindo e ele deixou que ela tomasse a dianteira. Delicadeza. Foi a palavra de ordem do primeiro minuto. A perfeição, a beleza da imagem que o beijo deles fez seria, seguramente, capa de um milhão de revistas ao redor do mundo. Eles ganhariam prêmios e mais prêmios pelo beijo mais delicado e repleto de sentimento jamais dado na história da humanidade.

Humanidade. Como eles não estavam sendo filmados ou até mesmo fotografados o beijo deixou de rodar o mundo, de ganhar prêmios. Mas, ao contrario de perder algo, o beijo ganhou força. Logo as mãos, que estavam presas ao ar tocaram umas o corpo do outro e as do outro o corpo de uma. O beijo se misturou ao vinho e virou calor. Calor ao movimento. Movimento ao suor. Com a chegada da madrugada uma tipica chuva de verão refrescou o clima e os barulhos da rua. Apenas uma luz suave da rua entrava trespassando as cortinas do quarto dela. Com todo o cuidado do mundo ele tirou uma mecha de cabelo do rosto dela que, sentindo o toque dele, sorriu. Das palavras do começo do dia até instante atual ele acabou sorrindo antes de adormecer com a frase que ouviu em uma música dias atras "nada és más simples, no hay outra norma, nada se pierde, todo se transforma." Realmente, o quê havia entre eles não se perdeu. Se transformou.

domingo, 12 de outubro de 2014

Aproximação

Então era isso. O clique da porta ecoou por não mais que dois segundos no apartamento onde dormia. Ela sabia que tinha que sair dali, sabia que a policia estava vindo. Sabia que eles a prenderiam. Sabia que tudo que tinha cometido não tinha perdão. Sabia de tanta coisa que agora, nesse instante, preferia não saber mais absolutamente nada. Preferia esvaziar a mente. Tinha de planejar um plano de fuga. Por anos aquele lugar havia sido seu esconderijo mais seguro, repleto de saídas, repleto de rotas de fuga este era o local ideal para ela estar sempre.

Agora ele era o lugar onde todos a procurariam. Havia sido traída por aquela que deixou o recinto segundos antes. Ou seria por outra pessoa? E se a pessoa que saiu da cama a deixando parcialmente no frio e sozinha apenas foi comprar leite e pão para o café da manhã? Tantas dúvidas pairavam em sua cabeça que não conseguia pensar em nada. Nem ao menos num plano decente de fuga. Sabia que tinha poucos minutos. Anos atrás havia investido uma boa quantia em dinheiro comprando um rádio que captava a frequência do rádio da polícia. Mais que isso: esse rádio estava ligado a um computador que ouvia cada mensagem, cada minima menção ao local onde ela julgava ser sua toca mais segura naquela cidade imunda e decidia se era ou não uma ameaça. Agora era um desses casos. Era uma ameaça real. A polícia chegaria em pouco mais de três minutos, mas ela não tinha forças para se mover. Será que havia sido por esse motivo que sua pessoa saiu sem dar satisfações? Não. Provavelmente ela não quis acorda-la. Provavelmente ela havia ido apenas a padaria que ficava no fim da rua, não mais do que dois quarteirões, do que oito minutos, daqui. Era isso. Quando ouviu a sirene se aproximando - tinha um bom ouvido para isso - soube que eles viriam e que estavam a poucos quarteirões. Rotas de fuga? Pelo toque dissonante e não cadenciado eram três viaturas, cada uma com, pelo menos, dois policiais. Era problemático? Era. Sobretudo se elas viessem cada uma de um lado.

Essa cidade desgraçada fazia os ventos que traziam os sons ricochetearem sem sentido pelo ar chegando aos ouvidos treinados dela como se viessem de um lugar onde, realmente, não estão. Estava vestida apenas com o lençol quando as sirenes se aproximaram mais. Mais e mais. Suspirou crente que havia chegado a hora que seria, enfim, capturada. Fechou os olhos ouvindo as sirenes cessando. As viaturas estacionaram ao redor do prédio. Então era isso. Era o fim. Foi quando a porta destravou e dela passou Aliana carregando um saco com não mais que três pares de pão fresco e uma garrafa de leite igualmente fresco. Ela trazia o jornal e um sorriso fino nos lábios, a polícia estava no quarteirão anterior. Não foi dessa vez que ela seria capturada e, com sorte, não seria nunca.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Lata de Coca

"Socorro." As palavras tem fugido dele e, quando eram pra ela, elas enchiam a garganta tal qual Bentinho depois do primeiro beijo em Capitu. A vontade de gritar mil coisas ao mesmo tempo, fazer com que a voz possa emitir uma palavra por cima da outra. A parede, outrora inspiração, agora era opressora. O cansaço, que até não muito tempo atrás era mera formalidade após um dia a mais vivido agora é fator determinante que me me açoita tal qual o cilício açoitava os penitentes da idade média.

O pior talvez não seja nem as palavras subirem a garganta, vindas do coração, todas ao mesmo tempo. Se fosse possivel registrar a cena seria como a Imigrantes em feriadão. O pior é aquele sufocamento que tal sensação cause. A sensação - que já chegou a ser boa e hoje era mortificante - matava aos poucos. Num dos raros intervalos do trabalho fugiu dos colegas que eram fumantes e dos viciados em café. Ambos os cheiros o faziam ter nauseas, se afastou. Na cantina comprou uma Coca-Cola, sem motivo especifico. Ao abrir a lata aquele barulho ecoou por todo o ambiente regressando pra ele amplificado. Logo no primeiro gole ele torceu o nariz. Como ela gostava tanto dessa porcaria? Aliás, por que diabos ele havia comprado isso? Caminhou até a janela, queria pragueja-la, reclamar por ela ter passado os vicios pra ele. Não os vicios propriamente ditos, mas as manias. Os transtornos obcessivos compulsivos. Da cantina até a janela mais próxima eram quatorze passos. Quatorze. Par. Ela havia lhe passado essa mania de, vez por outra e sem nenhum motivo aparente, "moldar as situações" pra elas sempre acabarem em números par. Se precisava, no meio do trabalho, ir ao banheiro, se propunha fazer mais dois roteiros antes de se levantar. Fazia um e o segundo era feito às pressas, já com a bexiga estourando. E ambos ficavam bons pros superiores dele.

Ao chegar na janela o tempo estava fechado. Chuvoso. Era uma quinta-feira. Sorriu de canto reclamando com ela por ter lhe passado aquelas manias doidas dela. Será que ela ainda pensava nele? Uma nuvem tratou de responder que sim, ela ainda tinha ele nos pensamentos. Assim como ele ainda a tinha em seus pensamentos. Ao longe ouviu seu nome. Não era com ele. Duas, três, quatro, cinco... na sexta vez ele se virou. Lhe pergutaram onde estava e ele só deu de ombros. Ninguem entenderia o longo e sério papo que havia tido com aquela grande nuvem cinza. O dia transcorreu sem maiores sobressaltos. A sexta se aproximava e ele não tinha planos para o final de semana. E se...? Ele decidiu arriscar tudo.

No sábado, ainda nublado, mas sem previsão de chuva, logo cedo pegou o capacete, a jaqueta, encheu o tanque da motocicleta, colocou duas mudas de roupa na mochila e subiu a serra. No caminho parou no prédio dela. O porteiro o reconheceu, dez minutos de conversa e ele tinha o novo endereço dela. Por que ele nunca fez isso? Esse era mais um daqueles mistérios da vida que ninguem sabe explicar. De quebra ainda pegou algumas correspondências que ela não tinha vindo buscar naquela semana. Graças ao celular descobriu uma rota para chegar lá. Uma casa baixa, de muro médio e um portão de gradezinha fina. Estacionou a moto fora do alcance de visão. Bateu palmas e berrou a plenos pulmões "carteiro", quando tudo que queria gritar era "socorro", não no sentido real da palavra. Mas num sentido semelhante ao do Ali-Babá abrindo a grande caverna de pedra. Veio todo o caminho pensando que estava numa situação desesperadora. Dormia mal, trabalhava demais. Por isso o pedido de socorro, ela era a tranquilidade dele. Ela, apesar das idas e vindas da vida, era o porto seguro dele, assim como ele também era o porto seguro dela. Ambos, duas ambulâncias prontas pra atenderem um ao outro. Quando a porta fez barulho de destrancar ele quis fazer mil coisas: evaporar, sair correndo, se mostrar desde o início. Mas não. Ficou numa posição onde ela podia ver que havia alguem no portão, mas não ver quem era. Assim ela viria até ele e eles teriam aquela coisa que só eles sentiam, que não se explicava, que apenas se sentia... se vivia.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Número Desconhecido

Tinham se passado vários meses e algumas semanas desde que ele, ou por cansaço ou por falta de vontade, havia deixado de procura-la. Não tinha sido uma decisão fácil ou tresloucada, pelo contrário: ponderou muito antes de tomar esse caminho. Porém decidiu, unilateralmente, que era melhor para ambos se ele se afastasse em definitivo. A verdade é que, com cérta lábia, havia conseguido o novo endereço dela. Várias vezes saiu para lá mas pegava o primeiro retorno na estrada e voltava para casa.

A vida seguia seu fluxo tal qual rio que passa por debaixo de uma ponte. Seus esporádicos trabalhos bancavam a vida que levava e os poucos colegas de faculdade lhe davam a diversão de que precisava. Sentia falta dela? Claro que sentia. Chegou a guardar o porta-retratos em que ela, a extremo contra-gosto, posou pra foto com os cabelos cacheados. Em sua mesa não haviam mais fotos. Apenas um outro papel e muita bagunça organizada da forma que apenas ele compreendia.

Passou a sair nos sábados e tornar pra casa apenas nas primeiras horas de domingo. Bebia dentro do seu limite, comia dentro da sua saciedade, festejava dentro do seu bolso. Vez ou outra tinha algumas lembranças dela (sobretudo quando olhava para a Lua) porém era algo que logo passava e se esvaía no ar. Não faltava material humano para fazer-lhe esquecer dela. Esquecer não, mentalmente riscou esquecer. Para fazer supera-la. E estava tendo êxito.

Em uma noite em que não tinha nenhum programa na televisão ou aula na faculdade decidiu procurar pessoas em sua rede social, numa dessas encontrou a pianista. Conversaram por horas a fio, conversavam por mensagens no celular boa parte do dia. A pianista dizia estar bem estabelecida na Bélgica e não tinha planos para voltar... ele viajava nas fotos que ela enviava. Paralelo à isso problemas familiares com a prima o trouxeram de volta ao seio familiar. Assim a vida seguia até o fatídico dia em que seu celular se jogou ao chão. Nunca mais o aparelho deu sinal de vida. Acabou comprando outro aparelho, porém a agenda se perdeu. Aos poucos foi recuperando alguns números e deixando outros sem querer saber de atualização.

Em um dos sábados que não teve vontade de sair - parte pelo frio, parte por preguiça - ele se deitou na laje vendo o sol se por e as estrelas brotarem no céu. As luzes da cidade frustravam um pouco a visão dele mas, ainda assim, podia tentar recitar o Soneto XIII de Bilac, lembrava-se da música do kid abelha, mas o poema em si esquecia de um ou outro verso. Foi quando o celular, igualmente deitado ao lado dele, acendeu apagando em seguida. Uma mensagem. Olhou a hora. A pianista devia estar dormindo a essa hora, a prima deveria estar em casa... deveriam ser alguns dos colegas o chamando para sair. Deixou suspensa a leitura da mensagem enquanto pensava se estava afim de sair. Puxou pela lembrança quanto dinheiro tinha. "Por que não?". Alcançou o celular. "Esta em casa?" questionava a mensagem de número desconhecido. Tentou lembrar de quem era o número. Não, nenhuma lembrança. "Quem é?" Respondeu, voltando as suas lembranças de Bilac. "... E ao vir o sol, saudoso e em pranto, inda as procuro pelo céu deserto..."

domingo, 27 de julho de 2014

Noite de Sábado

Podia ser mais uma noite tranquila. Mas não. A vizinha do andar de cima caminhava com aquele salto pra um lado e pro outro. Será que minhas macumbas deram certo e ela estava com uma puta diarréia? Só que acho que não devia ter usado farofa de mercado, a diarréia veio, mas o salto era pra me castigar por usar produto barato no serviço. Do outro lado a vizinha gótica do apartamento do lado ouvia aquele rock melódico, extremamente afinado e gostoso de ouvir, porém não às três horas da manhã. A vizinha crente do outro lado deixava naquelas rádios de exorcismo enquanto transava descontroladamente com o primeiro macho que achou na rua. Essas noites de sábado nesse muquifo eram cada vez piores. Ainda se eu tivesse algum no bolso pra tocar o terror em algum puteiro próximo, mas estava mais duro que pão dormido, claro que podia colocar a farda e conseguir algum fingindo blitz falsa, mas, desde aquele incidente eu não consegui mais ser exatamente como era. Fui na janela, acendi um cigarro e o joguei fora depois da primeira tragada, chega dessa porcaria na vida.

Tinha de sair dessa vida. Embora fosse confortavel, podia ir e vir da corporação a pé e alguns vizinhos ainda me respeitavam. Respeitavam o "puliça". Outros vizinhos me ignoravam, eram educados nos raros momentos de convivência, fora isso cagavam pra minha existência assim como eu cagava pra deles. E, os maconheiros do quatrocentos e vinte fugiam ao me ouvir. Era melhor mesmo, se eu pegasse daria uma coça tão grande neles que iam entrar até na igreja.

Aquela garota, Helena, me fez repensar muitas coisas na vida. Parar de fumar era uma delas. E olha que só ficamos juntos o quê? Umas três ou quatro horas. Mas foi o suficiente pra eu me pegar pensando e não apenas reagindo a tudo. Podia ir a cada um dos apartamentos resolver isso, pedir pra vizinha de cima tirar os cascos, dizer pra crente do lado que ela devia procurar a igreja e se tratar depois dizer pra gótica que, ao contrario dela, muita gente aqui precisava dormir. Quem sabe convidasse a gótica pra sair. Quer dizer, não hoje, amanhã tinha que trabalhar. Doze horas trabalhando e mais doze fazendo hora extra, me sobravam vinte e quatro de folga, seria uma boa sair com a gótica e esquecer um pouco aquela desgraçada da minha ex. Pensar nela me trouxe minha amiga cefaléia. Fui até a cozinha.

Abri a geladeira, peguei a vodka e uma aspirina. Não lembro porque guardava remédio na geladeira. Tirei a tampa da vodka e engoli a aspirina. Fechei tudo e fui pra cama. Tinha de descançar um pouco que fosse e da forma que fosse. Durante a ronda passaria em alguma banca e compraria o jornal procurando outro apartamento dentro das minhas possibilidades financeiras e próximo da corporação.

Deitado esperando o efeito dos "remédios" o teto parecia querer cair com os cascos da vaca misturado com o exorcismo e a voz da Simone Simons. Formigas. Lembrei o motivo do remédio na geladeira. Na geladeira era o único lugar que elas não entravam. Antes de pegar no sono lembro de ter saído na janela e dado dois tiros pro alto e ouvir o silêncio se fixar. Talvez nem tenha feito isso realmente. Ou talvez tenha.

terça-feira, 8 de julho de 2014

A Copa das Copas

No começo da copa comprei uma bandeira grande e coloquei lá em cima, na laje. Veio a chuva forte, entortou o mastro que eu estava usando (um trilho velho de cortina) o quê me fez tirar a bandeira e achar um mastro mais forte (outro trilho de cortina, mas, dessa vez, com um cabo de vassoura dentro) e coloca-la de volta a tremular com o vento. Ou, como eu gosto de dizer "a bandeira sendo desfraldada pelo vento". Nas ruas todas as casas tinham uma bandeira do Brasil, todas as lojas tinham uma bandeira do Brasil. Alguns até pintaram ruas, cobriram o capô dos carros com bandeiras. E o quê era aquele hino? Eu devo admitir que me emocionava ao ouvi aquele coral imenso cantando o hino junto.

O hino devo admitir que é um caso a parte, uma história a parte pra mim. Sempre achei lindo o hino nacional. Minto, não só o nacional: todos os hinos, fosse o da Marinha, da Independência, da Bandeira, todos eles. A primeira vez que me emocionei com o hino foi alguns anos atrás, quando tive a incrivel oportunidade de ver a banda da Marinha Brasileira tocar ele e, em seguida, o hino da Marinha (aquele do "qual cisne branco que em noite de lua, vai navegando num lago azul..."). Admito, fui as lágrimas cantando junto com o coral. E agora, na copa, no Brasil. Véi, no primeiro jogo eu fechei os olhos, no jogo seguinte eu fiquei de olhos marejados. Devem me achar meio idiota por gostar dessas coisas. De ser patriota.

Oras. Temos por base achar "lindo" tudo que vem dos Estados Unidos e lá eles colocam a bandeira nacional nas varandas, cantam o hino TODOS os dias antes da aula, antes de eventos. Quem já assistiu as 500 Milhas de Indianápolis sabe do que eu falo, 300 mil pessoas de pé cantando o hino de seu país! E quem é de fora quietinho, só admirando. Mas brasileiro só gosta de copiar o quê é feio. Só copiamos a baixaria, os programas de televisão, a "cultura" pobre. Por que não copiamos isso também? Temos uma cultura riquíssima. Milhares de músicos Brasil afora cantando músicas em nossa língua, diversos autores lançando mensalmente centenas de livros de uma qualidade riquíssima e o quê valorizamos? O quê vem de fora. A mídia costuma dizer que temos uma cultura incrivel e bla bla bla. A Argentina (que ganhou duas copas) já ganhou um Oscar, o Uruguai (que também já ganhou duas copas) também. O Chile (que não ganhou copa nenhuma) já ganhou, pasme, um Nobel de literatura! Tudo bem, o futebol (e esporte duma forma geral) é importante. Mas a cultura também é. Mas a cultura ensina o povo a pensar, e isso não é bom pra grande mídia brasileira... porém não vou ficar falando de mídia.

Eu venho de um tempo em que se cantava o hino toda semana e, na semana da pátria se cantava todo os dias intercalando com o hino do município e o hino da bandeira! E se eu falar que nem faz tanto tempo assim? Não tem 20 anos. Não vou fazer discurso político ou coisa que o valha, não é lugar disso aqui. Mas, voltando ao hoje, depois do jogo fui lá na rua ver o movimento... todos que passavam por mim tinham um ar de velório. E eu entendo isso. Entendo sim. Quando meu Corinthians caiu pra série B do brasileirão eu senti esse tipo de dor. Esse tipo de comoção. Mas não deixei de ser corinthiano um só minuto, pelo contrario: no dia seguinte eu saí na rua com a camisa do Corinthians de orgulho. A derrota foi feia? Foi, horrivel. Nunca vi um time jogar tão mal assim na vida inteira, sério. Mas e daí? Tirando quem apostou muito dinheiro em bolão a vida do resto do mundo não muda. Os jogadores continuam ricos, a população continua tendo que se virar. A vida continua.

Comecei falando da bandeira, não é? Pois é, enquanto meus vizinhos, muito provavelmente, vão tirar as bandeiras eu vou deixar a minha lá. Tremulando e demonstrando o meu orgulho de ser brasileiro. Corrupção todo lugar tem. Violência todo lugar tem. Pobreza todo lugar tem. Não posso fazer quase nada pra ajudar outros países, mas o meu país eu posso fazer muita coisa. Posso eleger quem julgo ser mais honesto, posso não furar fila, posso não jogar lixo no chão. Infelizmente no Brasil ainda reina a hipocrisia... mas, isso fica pra outro dia. Hoje vou cantar a plenos pulmões "Dentre outras mil és tu, Brasil, ó pátria amada, dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil".

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Trem

Muitos sempre disseram que o fim era algo melancolico. Claro que, entre eles, essa melancolia de fim existiu. O romance deles respirou com a ajuda de aparelhos por vários meses - mesmo ele sendo a favor de, em caso de sofrimento do paciênte, que se desliguem as máquinas de uma vez por todas - até que, enfim, tudo se esvaiu. O poder de existência que mantinha aquela pequena fagulha ainda acessa se evadiu. Sem alarde, sem um porque, sem uma razão. Apenas subiu no trem - porque não há, em toda a literatura forma mais definitiva de ir do que um trem, aquele lento sacolejar de vagões, aquele desaparecer em uma curva e depois o som do motor da locomotiva se dissipando é algo que outras formas de despedir nunca são ou serão tão belas e definitivas que o trem - e foi-se.

E, então quando o trem se vai, quando aquele sentimento que, sim, existiu e foi vivido ao extremo da palavra viver se extingue fica, claro, um vazio. Claro que ela se virava em sorrisos e, a seu modo, seguia adiante e ele, também a seu modo, se virava e tentava tapar aquele buraco fundo. Obviamente uma colher de chá para tapar uma cratera há de demorar algum tempo... a menos que, claro, alguem apareça com uma retroescavadeira ajuda muito.

Então o silêncio se fez, nunca mais trocaram uma palavra. Não havia necessidade. Ele tinha conseguido o endereço dela, mas... ela tinha o endereço dele e nunca foi atrás dele. Então por que ele iria? Claro que várias vezes ele se pegou parado em frente do novo endereço dela. No começo ficou uma hora, depois menos e menos até não ter mais a necessidade de ir até lá. A prima dizia que era assim que livrava de vício. Teria sido ela um vício pra ele? Um lento suspiro e ele chegava a conclusão de que não. Um sentimento, um amor nunca era um vício. Vício denota um tom pejorativo e o que eles tiveram não foi pejorativo. Houveram alguns momentos ruins, claro, mas... era assim mesmo.

As lembranças vinham com uma música no rádio. Com alguma imagem, porém... vinha um sorriso de canto e uma lembrança boa. Apenas isso. Seu foco agora era outro, provavelmente o dela também. Assim era a vida, fosse isso bom ou ruim. Para ele, pelas lembranças serem boas - as ruins fez questão de esquecer - gostava de lembrar e, vez ou outra, olhava para aquela caixa de sapato em cima do armário e relia algumas cartas. Viesse quem viesse, fosse a mulher que fosse, se falasse qualquer coisa em "jogar fora aquele monte de velharias" colocava-a para correr. Aquelas eram as lembranças boas que ele nunca iria esquecer. Até o dia que apareceu uma que, curiosa com a caixa, bisbilhotou e achou lindas as lembranças que ele guardava e compartilhou as suas. Seria esse som ao longe um novo trem que apitava entrando na estação?

sábado, 17 de maio de 2014

inquietação

Sentia necessidade de fazer algo. Qualquer coisa que fosse, se sentia sufocado. Aquela sensação o sufocava. Talvez fosse hora de ir atrás dela. Talvez fosse hora de não adiar mais e ir até ela. Claro que não tinha o novo endereço dela, mas, quem liga? Era só passar a conversa no porteiro e pronto. De quebra ainda levaria as eventuais correspondências para ela. Perfeito. Perfeito? Quando já tomava o capacete nas mãos pensou na palavra. Perfeição é o primeiro passo para o fracasso. Nada, absolutamente nada, que dure muito tempo é perfeito. Havia sido assim entre eles. Passavam um tempo em mares tranquilos até que uma simples gota fazia o copo transbordar.

Era essa intranquilidade, essa eterna corda bamba que os mantinha juntos. Até mesmo quando ele, por motivos alheios às vontades de ambos, teve de se mudar. Ainda se viram por um tempo. E todas as vezes que se viam era perfeito. Ora ele fazia aquela cena de cinema, entrando no apartamento dela antes dela chegar cansada do trabalho e preparando o jantar, ora ela indo até ele trazendo uma pizza congelada e uma coca retornavel. Era perfeito demais para durar. Estava na garagem, capacete nas mãos, jaqueta de couro lhe cobrindo os ombros quando se deu conta de tal coisa. Suspirou olhando de relance para o quartinho que ficava na garagem. Lá ainda residiam algumas caixas da mudança sem serem abertas, provavelmente coisas que eram deles e que ele, até o momento, não havia dado por falta.

Estava com a chave do quartinho presa a da motocicleta. Naquele molho de chaves estavam a chave do portão, da porta da cozinha, da porta dos fundos, da motocicleta em si e do quartinho. Com a ponta dos dedos selecionou a chave que abria o diminuto cômodo nos fundos. Provavelmente onde a empregada dos primeiros donos dormia. Não tinha mais do que três por quatro metros, provavelmente caberia aqui uma cama de solteiro e um armário comum. Talvez até um criado-mudo onde uma televisão que seus patrões, pra não jogar fora, deram à tal empregada que se desenhou na mente dele vendo as novelas do vale a pena ver de novo e depois se dividindo entre o filme da sessão da tarde e de recolher a roupa da laje e preparar o café de seus patrões.

Sorriu de canto imaginando a empregada se derretendo pelos atores. Ou assistindo por assistir, afim de relaxar os pés, talvez fosse uma guria vindo do interior, com aspirações altas, nobres e lúcidas e quem sabe se realizaveis, sonhasse em cursar uma faculdade, mandar algum dinheiro para seus pais no interior do estado, pessoas que muito sofriam com a lida diaria de sol a sol carpindo, plantando, colhendo e vendendo em alguma feira da propria cidade pequena à algum atravessador que lhes pagaria uma merreca e, depois, revenderia pelo dobro à outro atravessador que, novamente, dobraria o valor até chegar ao consumidor final que ficaria feliz em achar o produto por preço tão atraente. Talvez ela lutasse para fugir desse ciclo vicioso vindo para outra cidade maior, achando que era o ideal, achando que a quantia de um salário mínimo, que na roça é uma fortuna, seria incrivel em uma cidade onde até água potável teria de pagar. A cidade grande era uma mentira. Para todos. Provavelmente ela logo perceberia isso e acabaria trocando de emprego ou voltaria para a sua cidade natal afim de contar as histórias de suas peripécias na cidade grande, levaria causos, se casaria com um borracheiro e viveria numa felicidade plena até suas filhas repetirem seu sonho de ir para a cidade grande.

Ou talvez, então, fosse uma senhora idosa, que sem oportunidades de emprego para completar sua renda que a aposentadoria não supria - nem mesmo seus remédios ela conseguia pagar! - e sem suporte de sua familia que havia se mudado, anos atrás, para uma cidade ainda maior, havia aceitado o emprego de empregada doméstica nessa casa. Nas suas horas de folga talvez ligasse a televisão na sessão da tarde e, entre uma cena e outra, desse um breve cochilo lendo algum dos livros que seus patrões deixavam na grande estante que ornava a sala. Nesses poucos anos dentro dessa casa, praticamente inserida nessa familia, ela já havia lido quase todos os livros e tinha por sonho ler todos antes de morrer. Ela tinha consciência que logo morreria e queria liquidar algumas curiosidades de histórias que, em um passado remoto, no interior, havia ouvido falar por intermédio de seus professores.

Curioso. Tanto a jovem quanto a idosa, para ele, vieram do interior. Era um esteriótipo típico das empregadas em cidades grandes, não? Pensava ele, quem em sã consciência vai aceitar ser empregada doméstica e dormir num quarto que mede pouco mais do que um banheiro? Tantas divagações que aquela ânsia, aquele desejo, aquele sufocamento lhe veio ao peito novamente. Não era real essa sensação. Era algo que, por mais que lhe fechasse as vias respiratórias, dificilmente o mataria. Resolveu pegar uma das caixas sem nada escrito. Quer dizer. Estava escrito "Sabão em pó". Quem faz muitas mudanças de endereço durante a vida - como ele - sabem que caixas de papelão, grandes, onde veio o sabão em pó para os mercados, são as mais resistentes.

Ao abrir a caixa seu sorriso de alguns segundos atrás se alargou e se afinou diversas vezes enquanto, com a ponta dos dedos, dedilhava o velho toca discos que havia sido de seu pai e que, há vários anos, não via ou emitia algum som. Um velho toca discos philips. As caixas de som estavam ao lado da caixa. Talvez curioso não fosse o toca discos em si mas o vinil menor, um EP. O nome estava apagado, mas, ao limpar a agulha e trazer o aparelho para o lado de dentro e ele, enfim, tornar a emitir som o sorriso se desfez. Ficou preso à voz. Ficou preso àquela música por todas as horas que se seguiram em que o EP foi ouvido acompanhado não da sua eterna companheira vodka, mas de um vinho tinto que havia ganho de alguem da empresa meses atrás. Cada gole era algo além que vinha em seu ser. Aquele sufocamento ia sendo empurrado garganta abaixo a largos goles da bebida. Deixou a música tomar conta de si e lhe fazer viajar. Não restava mais nada na garrafa. O EP tocava uma última vez. Ele deixou a música no volume máximo e se deitou no sofá. Livre de ânsias. O capacete na mesa da cozinha, uma garrafa de vinho vazia e um vinil balbuciando em francês "ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas..."

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Pérola Branca

Depois de alguns meses o Pérola Branca - um belo veleiro de casco grande e cabine com os luxos de um pequeno apartamento - sai do cais de NY. Sua capitã ruma sem um destino certo. A única certeza que tem é que quer sair sair dali, talvez pra sempre, talvez por uns meses. Queria conhecer o mundo. Tinha aprendido nos anos que já possuía o veleiro todas as formas de guia-lo mar adentro. Os estoques de comida e água haviam sido abastecidos na noite anterior à sua partida, calma e serena pelo rio Hudson com os primeiros raios da manhã e a calentadora brisa matinal.

Os poucos barcos que se atreviam sair naquela hora tinham como destino ou o golfo do México, Caribe ou ainda alguma ilha particular próxima. O Pérola era o único que saía daquela baía com um destino incerto. Fixado o timão sua hábil capitã foi ao convés, como se fosse se despedir daquela cidade que tanto a acolheu nos últimos tempos. Uma lágrima teimosa ousou sair e lhe escorrer pela face. Mas o vento frio vindo do mar e a névoa aos poucos engoliam a grande maçã atrás dela. Os tempos agora eram outros.

As coisas não tinham saído como ela havia planejado. Poxa, não tinha cometido nenhum de seus deslizes anteriores então porque não deu certo? Tantas dúvidas. Tanto tempo que passaria no mar afim de sepulta-las naquela imensidão de água. Era a hora de uma nova aventura. Dessa vez não era a ruiva que desaparecia ao amanhecer, dessa vez era morena, a quem a ruiva tanto se apegou nos últimos tempos e quem dividia uma parte vital - o fígado, que a ruiva dilacerou nos anos pelos bares mundo afora- quem optava por essa forma de superar as dores e as mágoas vividas. Aspirou grande quantidade de ar e virou, suavemente a embarcação para o sudeste. Velho continente. Primeira parada, Paris.

sábado, 22 de março de 2014

Pedra de Gelo

Se sentou naquele balcão. O garçom levou três, talvez quatro segundos até chegar nele e perguntar o que queria. Por um instante ele olhou fixamente para o homem. Respirou fundo. Talvez ali não fosse o lugar exato pra se estar naquela situação. Os dedos doíam, os pés estavam moles. O corpo com uma dor aqui, outra ali. Do sono nem falava mais: era sua quase-rotina dormir não mais do que quatro horas por noite - não sentia falta do repouso. Piscou demoradamente voltando ao universo atual. Whyski, duas pedras de gelo. Foi seu pedido prontamente atendido. Constatou na comanda que essa era (ou devia ser) uma das bebidas mais caras da casa. Tudo por um punhado de grãos destilados e fermentados na antiga caledônia. Suspirou dando um gole curto. Ao menos aparentava ser original, fiel ao rotulo que postulava atrás do balcão.

Podia arrumar alguma companhia, quem sabe alguem para jogar uma boa conversa fora. Deveriam fazer o quê? Três meses que não falava com ela? Então era assim afinal. Havia superado mais essa. Brindou consigo mesmo sorvendo um gole maior do que o anterior. Ainda era cedo não havia ninguem no lugar. Talvez duas dúzias de pessoas, metade em volta de uma mesa só e duas em outra. As restantes eram um homem barbudo, gordo e com camisa xadrês - um tipico lenhador. O outro era um homem com a barba feita e uma gravata solta. Era sexta afinal de contas. Provavelmente aquele tipo estava esperando colegas do trabalho para comemorarem algum contrato, alguma promoção ou, até mesmo, a morte do chefe. A outra era uma mulher, bonita, bem vestida, que mexia no celular com tanta frequência que devia estar terminando a relação pelo tal do whatsapp. Ponderou se deveria falar com ela. Melhor não, não era correto interferir na briga do casal.

Assim sobrava apenas uma mulher. Aparência simples, sentada em um dos cantos do balcão. A sua frente uma long neck. Será que afogava as mágoas ou apenas esperava as amigas? Decidiu fita-la por alguns instantes. Ela tirou o celular da bolsa. A tela iluminou o rosto dela por alguns instantes. Bonita. A frustração se demonstrou no rosto dela tal qual nuvens de cinzas no céu demonstram a chuva que está por vir. Sorriu de canto, era a hora da caçada. Porém a dúvida lhe resoou de dentro do copo onde apenas as pedras de gelo derretiam silenciosamente: seria presa ou caçador?

sábado, 15 de março de 2014

Talvezes

Talvez a melhor coisa em ser adulto seja poder dar patada em alguem sem precisar explicar o motivo na hora. Depois, se quiser, você explica, mas na hora da patada, é só dar a patada e pronto, é como se todos fossem culpados por algo que te aconteceu. E não eram?! Sempre levei patadas dos adultos quando era criança e sempre achava que a culpa, efetivamente, era só minha. Talvez em algumas vezes fosse mesmo, mas, na maioria das vezes não era.

Desde que Helena se sentou diante de minha porta, com uma mochila e a história de fuga que tenho pensado, seriamente, nisso. Já faz uma semana desde que ela veio e se instalou. Depois de algumas horas conversando com os pais dela ambos chegamos a conclusão de que, antes comigo do que com outra pessoa. Engraçado refletir que, tanto eu, quanto Helena temos praticamente a mesma idade e, mesmo assim, os pais dela me acham mais madura. Talvez porque não me conheçam completamente.

Verdade seja dita: era bom ter alguem comigo. Sobretudo com a proximidade de uma data que selou meu destino, não que a lembrança não viesse dia após dia, mas as datas - digamos assim - "fechadas", que completam ciclos de um ano são as piores. Fossem quantos anos fossem as pessoas só se lembravam no exato dia que completava um ano, ainda que, pra física moderna, um ano nunca seja exatamente um ano. Um ano seria algo como seis horas antes do ciclo completo. De qualquer forma era bom ter Helena aqui. Ainda que o trato com os pais dela fosse dela ficar, no máximo, duas semanas com o objetivo de "tomar juízo". De fato ela tomava, mas não o juízo que seus pais almejavam.

No segundo dia dela aqui a embriaguês dela me fez a arrastar para baixo do chuveiro frio e deixa-la por meia hora. Trancada no banheiro. Enquanto os pais dela falavam que ela, mesmo tendo vinte e um anos, não deveria estar fazendo essas "meninices" eu sabia que tudo tinha um porém, um algo por trás. Em uma noite nos deitamos juntas, sem nenhuma conotação lésbica, praticamente como irmãs e ela, aos prantos - e me fazendo contar minha história depois -, me confessou o quê lhe afligia. E eu concordava que era complicado aquela situação toda. Afinal envolvimento com drogas, amores distantes, pequenos furtos... a história dela parecia coisa de cinema. Ainda que eu achasse que, boa parte, do que ela falava era, sim, mentira. Não, mentira não... talvez uma... ampliação da verdade verdadeira. Como quem diz que quebrou o pé e quando se vê só se quebrou a unha do dedo mínimo.

Quando os dias iam se aproximando eu ia chegando a conclusão de que, logo, ela iria embora e eu teria de contar minha história. Não era uma história bonita. Era triste. Foi ela quem me moldou assim, fria, calculista. Não era má, não fazia nada por mal, apenas não gostava de ceder mais do que o combinado. Se o combinado era dez, era dez e pronto, sem essa de nove. Talvez por pensar assim que minha família que ficou na distante Santa Catarina passou a me ver com outros olhos. Era uma quinta-feira, eu tinha dezessete quando tudo aconteceu. BR-101, não lembro qual quilometro. Apenas lembro que chovia. Curioso como a mente prega peças de eu não lembrar o ano mas lembrar que era uma quinta-feira e chovia. A pista estava molhada, o trânsito sempre carregado e as últimas provas da escola chegando. Nunca fui das melhores alunas, também não era das piores. Morava bem, não me faltava nada. Estava em casa, deitada na cama devorando um livro que havia ganho de presente, eram as últimas páginas. Quando virei a última página o telefone tocou. Ignorei. Terminei de ler e fui ver na bina quem era. Se não me falha a memória era o numero de um tio meu. Dez segundos depois o telefone toca novamente. Atendo. Dali em diante não prestei mais atenção em nada. Lembro do sol na segunda-feira seguinte. Só alguns meses depois a policia trouxe um laudo de que o carro onde eles viajavam aquaplanou e se chocou de frente em uma parede de pedras. Nenhum air-bag do mundo conseguiria deter a violência do impacto. Foi instantaneo, disseram. Ao fim daquele ano vendi a casa, e os dois outros carros que estavam na garagem. Completei dezoito no começo do ano seguinte e tomei meu rumo no mundo. Meus parentes nunca aceitaram completamente a ideia de que eu simplesmente vendi tudo e fui embora.

Amanha Helena vai embora. E hoje ela soube mais de mim. Assim como eu sei mais dela. Talvez seja destino que nos colocou diante uma da outra. Uma precisando de alguem de confiança e a outra só querendo alguem que não tivesse vínculo emocional. Fosse o quê fosse era isso. Ela estava dormindo docemente em meu colo enquanto eu acariciava seus cabelos. Talvez fosse a hora de arriscar alguma coisa, alguma coisa grande. Quem sabe uma arca que pudesse salvar nós duas. Isso. Uma arca. Ótima ideia.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Das Ende

Eu vou morrer. Sim. Não há opção. O fim se aproxima cada vez mais rápido. Lembro-me que, antigamente, os anos duravam muito tempo, hoje vejo que... 2012, o ano do apocalipse maia, já tem quase dois anos atrás. Dois anos no passado. Duas voltas completas da Terra ao redor do Sol. Mais de setecentos dias. Sete centos, sete vezes cem. É muito tempo. Por isso volto a afirmar que, sim, eu estou morrendo nesse exato momento. Digo mais: você, que me lê agora, também está morrendo. Você vai morrer. É estranho? Sim. Com certeza.

O pior é pensar que, depois de morrer, muito provavelmente não há nada. Não que eu não acredite em reencarnação, até acredito, mas não naquela reencarnação onde a pessoa morre e volta como pessoa. Acredito na reencarnação budista: quando você morre volta como outra coisa, minhoca, cachorro, ameba. Qualquer coisa, menos gente. Doi pensar nisso, não? Decididamente pra mim, não doi. Claro que pensar em nunca mais sentir nada me soa estranho... mas... não, realmente não me importo. Até porque, quando eu morrer, eu não vou sentir mais nada. Absolutamente nada.

Podia teorizar no que deve haver no além-vida... mas não, não sou teólogo, muito menos físico. Sou apenas alguem que, descobriu muito cedo uma habilidade não tão comum: escrever. Desde meus seis, sete anos sei ler e escrever (com uma letra feia, admito). E, desde os onze ou doze que escrevo pequenos contos. Quando passei a ter computador em casa é que comecei a escrever com mais frequência. Não tenho nenhum desses escritos mais, pois, naquela época eu realmente não me importava em salvar tudo pra, quem sabe um dia, publicar. Foi no longinquo ano de 2006 em diante que passei a guardar tudo. Comecei acho que como todo escritor começa: com poemas. Poemas de amor, sobretudo. Aos poucos fui me aventurando em um conto aqui, um conto ali... e chegamos aos dias atuais.

Hoje olho em volta. Na minha parede tem um mural onde poucas coisas estão fixadas. Alguns papéis de bala, umas figurinhas, um desenho feito pela, também escritora, Camila (o blog dela esta aqui nos links do "por onde andei"), um crucifixo de prata, alguns carrinhos de papel e um Tsuru, que ganhei de uma senhora japonesa (vinda do japão mesmo) na praça do Japão, em Curitiba. Esse Tsuru já viajou muito, mas muito mesmo, devo ter ele desde 1996... Recentemente eu li sobre a lenda desse pássaro de origami e li que ele simboliza o desejo de felicidade, boa saúde e boa sorte... Reza a lenda niponica que, se dobrar os mil desses pássaros, há de se conseguir uma graça. Será que a senhora que me deu esse meu Tsuru estava buscando algo? Uns dois anos atrás soube que ela já havia falecido um tempo atrás... será que ela conseguiu o que buscava? Tomara que sim.

Pensando nisso agora me lembrei da frase inicial do ótimo livro "A Menina Que Roubava Livros" que dizia: "Eis um pequeno fato: você vai morrer". E assim voltamos ao, provavelmente único, fato imutavel da vida: Nós todos vamos morrer. Quem acompanha o blog desde o inicio (ou desde a semana passada, desde que tenha lido mais do que apenas a última postagem) sabe que meus posts são quase todos sobre sentimentos e sensações. Adoro saber que, em dado momento do que escrevi, alguem se arrepiou ao ler. Enquanto escrevo essas linhas abri o painel do blogger e vi algo que sempre vejo mas hoje me dei conta. Algo como "Estou hoje lúcido como se estivesse para morrer". Cheguei a 100ª postagem. É, sem sombra de dúvidas, o blog onde eu mais escrevi, onde mais, por assim dizer, vivi. Mais de quatro mil e seiscentas visualizações. Deveria ser algo pra se comemorar né? E eu venho e falo de morte.

Talvez morramos todos os dias, partes nossas morrem e nascem a cada minuto, um cacoete de falar enrolado que tinhamos quando criança já não é mais percebido hoje e, aquela compulsão por organização, tão rara na infância hoje é parte de um Transtorno Obcessivo Compulsivo. Talvez, em mim, o meu lado escritor, que foi o precursor de todas as minhas, digamos assim, facetas culturais, divida espaço com meus outros quase-talentos-que-já-foram-hobbies. Sobre a mesa não vejo papel escrito, mas vejo papel desenhado, uma camera fotográfica, vários lápis... não sei mais o quê falo. Sinto que já perdi o fio da meada desse post faz horas. Melhor mata-lo e encerra-lo assim mesmo, sem um fim definido. O blog vai continuar sim, preciso exteriorizar meus sentimentos, minhas sensações, preciso dividir isso com vocês. Todos os blogs e portfólios vão continuar: o de designer, de fotografo, as colaborações esporadicas de sempre no "Cartas", das também escritoras Thata e Jéssica (os blogs de ambas também está nos links aqui do lado), os outros lugares também vão.

Claro, um dia tudo isso vai morrer. E, parafraseando Pessoa, em outros satélites, em outros planetas qualquer coisa como gente vai seguir escrevendo, desenhando, fotografando e publicando tudo em blogs. Uma coisa, aparentemente, tão inutil quanto a outra. Algumas coisas vão, naturalmente, mudar (ou, simplesmente, morrer) e outras vão surgir. Essa é a graça da arte: sempre em movimento, sempre morrendo e renascendo. Sempre assim, sempre nesse ciclo. Até o fim e o novo começo.


Observação: o titulo, como provavelmente só a Jan entendeu (por estar em alemão), quer dizer "O Fim", escolhi alemão por ser um idioma fonéticamente estranho mas que, pra mim, tem uma sonoridade interessante.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Universo em Criação

"Trovões no céu, um corpo ensanguentado no chão e no ar o cheiro de polvora completava o ambiente hostil...". Não. Janaina amassou a folha assim que terminou a frase a atirando ao lixo em seguida. Pensou por um instante em seguir os conselhos de sua amiga Helena e escrever no computador, afinal, no computador é mais "ecologicamente correto". Mas sempre que ela se sentava em frente à máquina ela fazia mil outras coisas e não tinha a concentração suficiente para escrever. Por isso ainda optava pelo papel e lápis - caneta não tem sentimento, lápis, grafite, sim, ele tem sentimento.

Bem dizem que, quando se pensa em uma pessoa, ela acaba aparecendo de alguma forma ou de outra. No visor do celular que tocava aparecia o nome "Helens". Era Helena. Por um instante deixou o aparelho tocando e se lembrou de quando tinha colocado o número da, então sua nova amiga, na agenda. Janaina andava em uma fase meio infantil, havia achado alguns videos antigos dos trapalhões, onde o, finado, Mussum, dizia toda hora as palavras terminando em 's'. Enfim atendeu. Helena queria convidar a amiga para sair, beber... essas coisas que a idade sempre convidava. Janaina, a principio não queria, mas pensou que, assim, poderia ter 'a' inspiração e escrever seu livro de histórias de terror, ficar famosa, rica, dar entrevistas, ganhar premios. Tanta a viagem que sua mente fez que ela acabou sorrindo sozinha enquanto pensava o que vestiria, antes mesmo de desligar o celular.

Não fez grandes escolhas de roupa, não precisava disso. Era naturalmente bonita, cabelos pretos, um corpo esguio com curvas definidas. Unhas parcialmente roídas - sobretudo a do dedo mínimo - e pouca maquiagem completavam o visual. Talvez fosse hora de assumir algumas coisas na vida, ir ver o mundo além dessa cidade. Olhou a caixa de joias que um dia foi de sua mãe. Sorriu passando a ponta dos dedos por sobre os brincos, anéis, correntinhas... não ousava usa-las, não com as taxas de roubos altas como andavam. As peças valiam mais do que o financeiro, eram parte de lembranças. No canto da penteadeira onde repousava a tal caixa de joias havia uma foto de seus pais. Faziam alguns anos desde que aquele acidente havia tirando eles dela. Herança nenhuma a consolou totalmente. Decidiu sair da cidade onde morava - no litoral de Santa Catarina - e vir para a tal cidade grande. Tinha de afastar algumas lembranças ruins. Vendeu a casa, os dois carros, já tinha idade pra viver sozinha, beirava os vinte anos quando se mudou.

Já tinha concluído o colegial e esperava por algum lampejo de ideia de algum curso de faculdade que poderia cursar. "Letras" diziam muito à ela. Não servia pra professora. Até gostava de letras, mas a ideia de lecionar lhe causava arrepios. Enquanto isso administrava alguns fundos que rendiam em bancos e alguns imóveis alugados em São Paulo. Não rendia muito, é verdade, mas dava pra levar o estilo de vida que Janaína tinha. O armário era com poucas roupas caras, a grande maioria era comprada em brechôs, lojas populares... e era uma dessas roupas mais simples que usaria. Helena, ao contrário sempre se vestia muito bem e haveria de reclamar da amiga vestida igual uma hippie. Uma hippie? Não, ela não se via assim. Era despojada e tinha seu proprio estilo de vestir. Maquiagem feita - apenas realçando os lábios e olhos - Janaína saiu trancando a porta atrás de si.

Desceu os lances de escada até a rua e já podia ouvir Helena vindo em um vestido azul-marinho, drapeado da cintura pra baixo, parecido com aqueles dos anos cinquenta. O cabelo displicentemente presos mas fugindo com o vento que cortava a rua. A maquiagem dava a amiga alguns anos a mais do que realmente tinha. Se abraçaram e caminharam na direção de uma rua onde haviam alguns bares, restaurantes. Por irônia ou por destino mesmo, encontraram alguns conhecidos, amigos, conhecidos de amigos e juntaram várias mesas. Janaína morava perto, então não precisava de carro para ir embora e, Helena, caso precisasse, dormiria com ela.

A reunião de amigos que, no começo, era regada a cerveja, batata frita e petiscos diversos, agora tinha uma garrafa de whisky caro rodando de mão em mão. Todos beberam, ao menos, três doses. Helena era uma das mais animadas, já havia bebido sozinha três latas de cerveja e agora estava na quarta do destilado escocês. Quando Janaína sentiu seu limite ela simplesmente parou de beber, não gostava de se sentir bebada, não na rua. Em casa gostava de beber afim de buscar alguma inspiração. As horas passavam e o grupo foi diminuindo. Cada um que saía jogava uma nota de vinte reais pra pagar a conta que, a essa altura, já passava de duzentos reais. Dinheiro não era problema, era a solução.

Janaína bem que tentou levar Helena consigo, mas ela dizia que voltaria com um vizinho, amigo seu. A morena, a principio, não levou muita fé, mas, devido a insistência da amiga, deixou-a ali e saiu a francesa para seu esconderijo. O dia seguinte prometia alguns negocios com aquela empreiteira que havia comprado a casa onde morou. O prédio que subiria ali teria uma dúzia de andares, belas colunas e dois apartamentos de Janaína, pra ela fazer o que bem entendesse. Entrou em casa decidindo que os alugaria. Tomou um banho rápido e se deitou. No dia seguinte tratou de seus negocios - ganhou uma boa quantia. Ao voltar pra casa sua amiga Helena estava sentada ao pé da porta, uma pequena mochila em seus pés e com uma grande história que começava na sarjeta, se desenrolava com extrema sorte e terminava com ela ali no tapete.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Travessia

Eu não vim nos navios, eu não passei a necessidade que meus avós, bisavós passaram ao chegar aqui, nessa terra de mata fechada. Nessa selva coalhada de animais ferozes, de doenças que lá, no velho continente, não existiam. Dos poderosos de coisa nenhuma ganharam, quando muito, dois pacotes de prego, punhados de sementes variadas e mais nada. Mas o preço era alto demais: Tiveram seus nomes, sobrenomes anotados por algum funcionário preguiçoso que os mutilou completamente, o quê um dia foi o símbolo máximo de um clã, de uma família agora era algo diferente, em letras diferentes, em sotaques diferentes. Subiram a gigante serra do mar que, na época, era algo feito de terra batida, quando muito um caminho onde passava - raspando nos galhos das árvores - uma carroça que sacolejava mais que o navio que enfrentou o mar.

Ao chegar na capital a coisa não melhorava. Havia um trem, disseram, um trem que levava até metade do caminho, de lá em diante haveria um barco que levaria à uma cidade. Uma cidade. Todos aqueles homens e mulheres, muitos que abandonaram suas casas vendo a eminência da guerra galgando a passos largos, vindo depressa à soleira das portas. Nessa hora ninguém é covarde se foge afim de sobreviver. Jamais. Ao contrário: tem de ter muita coragem em sair do seu país e ir desbravar algo completamente desconhecido.

O trem lhes custou o resto de suas últimas moedas. Agora estavam apenas com as sementes e o pacote de pregos. Decidiram descer o rio. Acharam um campo que falaram ser fértil, ser tranquilo e o clima lembrar bastante a velha terra amada. Por sorte - ou até mesmo por uma total coincidência - alguns haviam trazido em suas malas algo além de roupas, esperanças e sonhos de recomeço. Haviam trazido coisas práticas como martelos, serrotes... logo após as primeiras árvores derrubadas notaram que os pregos que haviam ganho seriam insuficientes. Rapidamente desenvolveram formas de construir sem usar tantos pregos, logo construiram pequenas casas, foram ocupando subempregos, alguns progrediram, mas o lugar ainda era completamente diferente. A língua, barreira na negociação do nome agora era barreira feroz na hora de se ambientar àquele lugar. Não posso dizer se passaram fome, sede... mas provações, sei que passaram. E superaram.

E hoje, quando olho meu sobrenome na identidade, sinto orgulho, não sou um décimo da garra e da força, a covardia corajosa, a capacidade de se adaptar a algo completamente insosso, algo sem precedentes. Aposto que os ancestrais de meus ancestrais não esperavam por essa mudança, esperavam que toda a família ficasse unida pelos séculos que viriam a frente. Não ocorreu, houve a divisão. Talvez, se não tivesse isso, eu estaria nas ruas protestando. Talvez a família nem existisse mais... pensar nisso me trás uma saudade de meu avô paterno que, pasmem, não conheci e ainda assim sinto falta! Obrigado pela covardia corajosa de vir rumo ao desconhecido! Obrigado por terem dado a seus descendentes o orgulho que pulsa firme em meu peito. Sim, sou brasileiro, mas também tenho uma pontinha de coração batendo lá em minha eterna - ainda que eu não tenha pisado lá - pátria, minha Ucrânia! Chy Bude Ukraina!

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Mexicana

Estava semi-nua, depois de vários dias com a pele exposta e rasgada era de se esperar que já não sentisse mais tanta dor quando aquela lâmina de fio extremamente afiada passa por seu ventre. Não daria a informação, mesmo que isso lhe custasse sua vida. Longe dela querer morrer, porém era tudo uma questão de prioridades: não queria morrer, no entanto, mais que isso, não queria entregar ninguem. Jamais entregaria seu bando para os cães de Escobar. Dizem que em certo ponto até mesmo o cérebro entra em parafuso com a dor e acaba falando até mesmo as coisas que se controlou tanto para não contar. Esperava ou ser salva ou morrer antes disso. Mas como seria salva? Será que alguem do seu bando sabia que ela havia sido sequestrada? Não... ela havia saído daquele prédio ao sul de Tihuana por conta própria, já não conseguia mais sustentar aquela condição de ver Cristina, nos braços de Ruan. Claro, eles formavam um casal incrivelmente perfeito e lindo... O que Carolina queria agora, era a segunda opção, logo. Foi quando o estampido se fez. Seguido de diversos outros, alguns curtos, secos - tipicos tiros de pistola - e outros mais longos - tiros de carabina. Ainda pode se ouvir alguns tiros cadenciados, metralhadora quem sabe? Perdeu totalmente a noção do tempo. Sorriu ao ouvir a voz de Cristina. Sorriu e deixou-se apagar em meio a dor que sentia. A primeira opção venceu. Mais uma vez a morte teria que esperar.