sábado, 17 de maio de 2014

inquietação

Sentia necessidade de fazer algo. Qualquer coisa que fosse, se sentia sufocado. Aquela sensação o sufocava. Talvez fosse hora de ir atrás dela. Talvez fosse hora de não adiar mais e ir até ela. Claro que não tinha o novo endereço dela, mas, quem liga? Era só passar a conversa no porteiro e pronto. De quebra ainda levaria as eventuais correspondências para ela. Perfeito. Perfeito? Quando já tomava o capacete nas mãos pensou na palavra. Perfeição é o primeiro passo para o fracasso. Nada, absolutamente nada, que dure muito tempo é perfeito. Havia sido assim entre eles. Passavam um tempo em mares tranquilos até que uma simples gota fazia o copo transbordar.

Era essa intranquilidade, essa eterna corda bamba que os mantinha juntos. Até mesmo quando ele, por motivos alheios às vontades de ambos, teve de se mudar. Ainda se viram por um tempo. E todas as vezes que se viam era perfeito. Ora ele fazia aquela cena de cinema, entrando no apartamento dela antes dela chegar cansada do trabalho e preparando o jantar, ora ela indo até ele trazendo uma pizza congelada e uma coca retornavel. Era perfeito demais para durar. Estava na garagem, capacete nas mãos, jaqueta de couro lhe cobrindo os ombros quando se deu conta de tal coisa. Suspirou olhando de relance para o quartinho que ficava na garagem. Lá ainda residiam algumas caixas da mudança sem serem abertas, provavelmente coisas que eram deles e que ele, até o momento, não havia dado por falta.

Estava com a chave do quartinho presa a da motocicleta. Naquele molho de chaves estavam a chave do portão, da porta da cozinha, da porta dos fundos, da motocicleta em si e do quartinho. Com a ponta dos dedos selecionou a chave que abria o diminuto cômodo nos fundos. Provavelmente onde a empregada dos primeiros donos dormia. Não tinha mais do que três por quatro metros, provavelmente caberia aqui uma cama de solteiro e um armário comum. Talvez até um criado-mudo onde uma televisão que seus patrões, pra não jogar fora, deram à tal empregada que se desenhou na mente dele vendo as novelas do vale a pena ver de novo e depois se dividindo entre o filme da sessão da tarde e de recolher a roupa da laje e preparar o café de seus patrões.

Sorriu de canto imaginando a empregada se derretendo pelos atores. Ou assistindo por assistir, afim de relaxar os pés, talvez fosse uma guria vindo do interior, com aspirações altas, nobres e lúcidas e quem sabe se realizaveis, sonhasse em cursar uma faculdade, mandar algum dinheiro para seus pais no interior do estado, pessoas que muito sofriam com a lida diaria de sol a sol carpindo, plantando, colhendo e vendendo em alguma feira da propria cidade pequena à algum atravessador que lhes pagaria uma merreca e, depois, revenderia pelo dobro à outro atravessador que, novamente, dobraria o valor até chegar ao consumidor final que ficaria feliz em achar o produto por preço tão atraente. Talvez ela lutasse para fugir desse ciclo vicioso vindo para outra cidade maior, achando que era o ideal, achando que a quantia de um salário mínimo, que na roça é uma fortuna, seria incrivel em uma cidade onde até água potável teria de pagar. A cidade grande era uma mentira. Para todos. Provavelmente ela logo perceberia isso e acabaria trocando de emprego ou voltaria para a sua cidade natal afim de contar as histórias de suas peripécias na cidade grande, levaria causos, se casaria com um borracheiro e viveria numa felicidade plena até suas filhas repetirem seu sonho de ir para a cidade grande.

Ou talvez, então, fosse uma senhora idosa, que sem oportunidades de emprego para completar sua renda que a aposentadoria não supria - nem mesmo seus remédios ela conseguia pagar! - e sem suporte de sua familia que havia se mudado, anos atrás, para uma cidade ainda maior, havia aceitado o emprego de empregada doméstica nessa casa. Nas suas horas de folga talvez ligasse a televisão na sessão da tarde e, entre uma cena e outra, desse um breve cochilo lendo algum dos livros que seus patrões deixavam na grande estante que ornava a sala. Nesses poucos anos dentro dessa casa, praticamente inserida nessa familia, ela já havia lido quase todos os livros e tinha por sonho ler todos antes de morrer. Ela tinha consciência que logo morreria e queria liquidar algumas curiosidades de histórias que, em um passado remoto, no interior, havia ouvido falar por intermédio de seus professores.

Curioso. Tanto a jovem quanto a idosa, para ele, vieram do interior. Era um esteriótipo típico das empregadas em cidades grandes, não? Pensava ele, quem em sã consciência vai aceitar ser empregada doméstica e dormir num quarto que mede pouco mais do que um banheiro? Tantas divagações que aquela ânsia, aquele desejo, aquele sufocamento lhe veio ao peito novamente. Não era real essa sensação. Era algo que, por mais que lhe fechasse as vias respiratórias, dificilmente o mataria. Resolveu pegar uma das caixas sem nada escrito. Quer dizer. Estava escrito "Sabão em pó". Quem faz muitas mudanças de endereço durante a vida - como ele - sabem que caixas de papelão, grandes, onde veio o sabão em pó para os mercados, são as mais resistentes.

Ao abrir a caixa seu sorriso de alguns segundos atrás se alargou e se afinou diversas vezes enquanto, com a ponta dos dedos, dedilhava o velho toca discos que havia sido de seu pai e que, há vários anos, não via ou emitia algum som. Um velho toca discos philips. As caixas de som estavam ao lado da caixa. Talvez curioso não fosse o toca discos em si mas o vinil menor, um EP. O nome estava apagado, mas, ao limpar a agulha e trazer o aparelho para o lado de dentro e ele, enfim, tornar a emitir som o sorriso se desfez. Ficou preso à voz. Ficou preso àquela música por todas as horas que se seguiram em que o EP foi ouvido acompanhado não da sua eterna companheira vodka, mas de um vinho tinto que havia ganho de alguem da empresa meses atrás. Cada gole era algo além que vinha em seu ser. Aquele sufocamento ia sendo empurrado garganta abaixo a largos goles da bebida. Deixou a música tomar conta de si e lhe fazer viajar. Não restava mais nada na garrafa. O EP tocava uma última vez. Ele deixou a música no volume máximo e se deitou no sofá. Livre de ânsias. O capacete na mesa da cozinha, uma garrafa de vinho vazia e um vinil balbuciando em francês "ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas..."

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Pérola Branca

Depois de alguns meses o Pérola Branca - um belo veleiro de casco grande e cabine com os luxos de um pequeno apartamento - sai do cais de NY. Sua capitã ruma sem um destino certo. A única certeza que tem é que quer sair sair dali, talvez pra sempre, talvez por uns meses. Queria conhecer o mundo. Tinha aprendido nos anos que já possuía o veleiro todas as formas de guia-lo mar adentro. Os estoques de comida e água haviam sido abastecidos na noite anterior à sua partida, calma e serena pelo rio Hudson com os primeiros raios da manhã e a calentadora brisa matinal.

Os poucos barcos que se atreviam sair naquela hora tinham como destino ou o golfo do México, Caribe ou ainda alguma ilha particular próxima. O Pérola era o único que saía daquela baía com um destino incerto. Fixado o timão sua hábil capitã foi ao convés, como se fosse se despedir daquela cidade que tanto a acolheu nos últimos tempos. Uma lágrima teimosa ousou sair e lhe escorrer pela face. Mas o vento frio vindo do mar e a névoa aos poucos engoliam a grande maçã atrás dela. Os tempos agora eram outros.

As coisas não tinham saído como ela havia planejado. Poxa, não tinha cometido nenhum de seus deslizes anteriores então porque não deu certo? Tantas dúvidas. Tanto tempo que passaria no mar afim de sepulta-las naquela imensidão de água. Era a hora de uma nova aventura. Dessa vez não era a ruiva que desaparecia ao amanhecer, dessa vez era morena, a quem a ruiva tanto se apegou nos últimos tempos e quem dividia uma parte vital - o fígado, que a ruiva dilacerou nos anos pelos bares mundo afora- quem optava por essa forma de superar as dores e as mágoas vividas. Aspirou grande quantidade de ar e virou, suavemente a embarcação para o sudeste. Velho continente. Primeira parada, Paris.