segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Sábado

Os instantes que ela veio caminhando até ele foram em camera lenta, não aquela clássica, o slow motion puro e simples. Era aquela super camera lenta. E, ainda assim, cada passo dela pela calçada até vê-lo e abrir o portão duraram não mais do que dez segundos. Dois segundos, no máximo, foi o tempo que se encararam enquanto ela, deliberadamente e sem falar uma só palavra o puxou para dentro.

Se encararam por longos minutos. Ela o arrastou para a cozinha enquanto do armário pegava outra xícara e colocava aquele café que, segundo ele, tinha cheiro ruim. Conversaram algumas amenidades durante o trajeto dela colocando outra xícara e buscando no fundo do armário o achocolatado. Uma rápida olhada afim de ver se não estava vencido. Não estava.

Dado o primeiro gole no leite gelado com achocolatado ele respirou fundo e falou. Falou. Falou e falou. Ela, num raro momento de quietude, apenas ouviu. Quando ele cessou a fala o silêncio imperou por um longo período. Mais precisamente trinta e oito minutos. Foi quando os lábios dela separaram e ela falou também. E assim passaram o dia falando, ora um, ora outro. Tal qual um debate político, mas, ao contrario dos debates, não havia mediador, até porque não haviam agressões. Eram mais confissões que outras coisas.

Ela puxou algumas coisas da geladeira e um almoço foi se desenhando, ele não sentia vontade de ir e ela também não queria que ele fosse, logo ele estava com um avental ajudando com a refeição. Ele se ausentou da casa minutos antes da mesa ser posta. Foi até ao pequeno mercado que havia visto um quarteirão atrás, comprou uma coca gelada e um pote de sorvete. Voltou e os pratos estavam na mesa, ela sorriu ao ver o sorvete e orientou que ele colocasse no freezer, pois o calor rapidinho transformaria-o em liquido.

O dia correu rápido e a noite chegou com o trânsito diminuindo, sendo trocado por alguns carros tocando música alta que vez por outra passavam e irritavam ela, desacostumada com esse barulho. A ele cabia apenas rir daquela atitude dela. Logo ela acabava rindo também e os olhos se cruzavam. E naquele cruzamento ocular mil coisas passavam diante deles e, como se não bastasse, outras mil palavras eram trocadas em milésimos de segundo.

Para o jantar a preguiça abateu e pediram uma pizza. Do alto de um armário ela tirou uma garrafa de vinho tinto, português. Deveria ser bem velho, pois o rotulo já tinha marcas amareladas que só o tempo é capaz de fazer. Na mesa a pizza, as duas taças e a garrafa de vinho os separavam. Bastou pouco, meia pizza e duas taças de vinho e já estavam mais próximos. Foi quando aconteceu. O toque. Tocaram as mãos na hora de tirar a caixa de pizza dali. O arrepio foi mútuo. Logo as mãos acabaram se entrelaçando. E o arrepio foi maior. Antes que pudessem falar qualquer palavra as cabeças se aproximaram, os olhos distantes não mais que duas dúzias de centímetros. O arrepio agora era maior do que qualquer outro. Quanto o arrepio chegou ao ápice ambos tomaram a iniciativa e os lábios se tocaram. Apenas se tocaram.

O relógio pequeno, em forma de borboleta, que ele havia dado para ela, anos atrás, martelava os segundos como uma talhadeira esculpindo pedra. Os olhos entre-abertos. Os lábios unidos. Quando ameaçaram iniciar o beijo foram para o mesmo lado, acabaram sorrindo e ele deixou que ela tomasse a dianteira. Delicadeza. Foi a palavra de ordem do primeiro minuto. A perfeição, a beleza da imagem que o beijo deles fez seria, seguramente, capa de um milhão de revistas ao redor do mundo. Eles ganhariam prêmios e mais prêmios pelo beijo mais delicado e repleto de sentimento jamais dado na história da humanidade.

Humanidade. Como eles não estavam sendo filmados ou até mesmo fotografados o beijo deixou de rodar o mundo, de ganhar prêmios. Mas, ao contrario de perder algo, o beijo ganhou força. Logo as mãos, que estavam presas ao ar tocaram umas o corpo do outro e as do outro o corpo de uma. O beijo se misturou ao vinho e virou calor. Calor ao movimento. Movimento ao suor. Com a chegada da madrugada uma tipica chuva de verão refrescou o clima e os barulhos da rua. Apenas uma luz suave da rua entrava trespassando as cortinas do quarto dela. Com todo o cuidado do mundo ele tirou uma mecha de cabelo do rosto dela que, sentindo o toque dele, sorriu. Das palavras do começo do dia até instante atual ele acabou sorrindo antes de adormecer com a frase que ouviu em uma música dias atras "nada és más simples, no hay outra norma, nada se pierde, todo se transforma." Realmente, o quê havia entre eles não se perdeu. Se transformou.

domingo, 12 de outubro de 2014

Aproximação

Então era isso. O clique da porta ecoou por não mais que dois segundos no apartamento onde dormia. Ela sabia que tinha que sair dali, sabia que a policia estava vindo. Sabia que eles a prenderiam. Sabia que tudo que tinha cometido não tinha perdão. Sabia de tanta coisa que agora, nesse instante, preferia não saber mais absolutamente nada. Preferia esvaziar a mente. Tinha de planejar um plano de fuga. Por anos aquele lugar havia sido seu esconderijo mais seguro, repleto de saídas, repleto de rotas de fuga este era o local ideal para ela estar sempre.

Agora ele era o lugar onde todos a procurariam. Havia sido traída por aquela que deixou o recinto segundos antes. Ou seria por outra pessoa? E se a pessoa que saiu da cama a deixando parcialmente no frio e sozinha apenas foi comprar leite e pão para o café da manhã? Tantas dúvidas pairavam em sua cabeça que não conseguia pensar em nada. Nem ao menos num plano decente de fuga. Sabia que tinha poucos minutos. Anos atrás havia investido uma boa quantia em dinheiro comprando um rádio que captava a frequência do rádio da polícia. Mais que isso: esse rádio estava ligado a um computador que ouvia cada mensagem, cada minima menção ao local onde ela julgava ser sua toca mais segura naquela cidade imunda e decidia se era ou não uma ameaça. Agora era um desses casos. Era uma ameaça real. A polícia chegaria em pouco mais de três minutos, mas ela não tinha forças para se mover. Será que havia sido por esse motivo que sua pessoa saiu sem dar satisfações? Não. Provavelmente ela não quis acorda-la. Provavelmente ela havia ido apenas a padaria que ficava no fim da rua, não mais do que dois quarteirões, do que oito minutos, daqui. Era isso. Quando ouviu a sirene se aproximando - tinha um bom ouvido para isso - soube que eles viriam e que estavam a poucos quarteirões. Rotas de fuga? Pelo toque dissonante e não cadenciado eram três viaturas, cada uma com, pelo menos, dois policiais. Era problemático? Era. Sobretudo se elas viessem cada uma de um lado.

Essa cidade desgraçada fazia os ventos que traziam os sons ricochetearem sem sentido pelo ar chegando aos ouvidos treinados dela como se viessem de um lugar onde, realmente, não estão. Estava vestida apenas com o lençol quando as sirenes se aproximaram mais. Mais e mais. Suspirou crente que havia chegado a hora que seria, enfim, capturada. Fechou os olhos ouvindo as sirenes cessando. As viaturas estacionaram ao redor do prédio. Então era isso. Era o fim. Foi quando a porta destravou e dela passou Aliana carregando um saco com não mais que três pares de pão fresco e uma garrafa de leite igualmente fresco. Ela trazia o jornal e um sorriso fino nos lábios, a polícia estava no quarteirão anterior. Não foi dessa vez que ela seria capturada e, com sorte, não seria nunca.