domingo, 4 de dezembro de 2016

Cascabel

Sempre ouviu que tudo que acontece, acontece por alguma razão ou motivo. Mas por que ele? Para quem acredita era deus em sua obra trabalhando para que tudo mantivesse o equilíbrio. Que equilíbrio? Esteban sempre trabalhou duro para ter tudo que tinha, sempre ia para casa com as mãos parcialmente sujas de graxa da pequena oficina que mantinha em Baviácora, México. Era o único mecânico em um raio de centenas de quilômetros, para ele tanto fazia quem eram seus clientes. Fossem da polícia, dos cartéis, moradores ou viajantes. Tinha o coração bom e, tendo pagamento justo por seu trabalho, atendia todos com um largo sorriso nos lábios. Todos no vilarejo o respeitavam e tinham nele um líder, um exemplo de que, trabalhando-se duro, era sim possível sair da pobreza e sofrimento que tanto assolava aquela região esquecida do mundo. 

Ele não era rico justamente por isso, todo o excedente que ganhava - fosse dinheiro ou bens - dívida com os menos favorecidos, e nem por isso ele vivia sem conforto. Esteban, sua esposa Salete, sua filha Clara e seu cachorro Tito tinham o conforto de uma boa casa, sem luxos ou exageros. Tinham.  Tudo por aquele dia. Aquele fatídico dia. Dezesseis de outubro de mil novecentos e noventa e dois. Um dos inúmeros cartéis , tal qual ladrões do velho oeste, invadiram a pequena cidade atrás de tudo que pudesse virar dinheiro. Só faltaram os cavalos, trocados por ágeis motocicletas. Tomaram todos os prédios, bancos, bares, lojas... nem mesmo o padre foi poupado. Quis o destino, criaturas divinas, céus, deus, diabo ou qualquer outro motivo alheio a compressão de Esteban que apenas ele e Tito, seu fiel escudeiro, sobrevivessem frente ao caos. Tantas dúvidas e apenas uma certeza: iria vingar todos, nem que isso demorasse anos. 

Vinte e um anos para ser mais exato. Foi no dia quatorze de março de dois mil e três que Esteban, com a ajuda de um facão comprido, que no México ganha o sonoro nome de machete, separou do corpo a cabeça de Domenico Pérez, traficante de drogas, armas, animais silvestres, pessoas para trabalhar e para abastecer a "américa" de prostitutas a preço baixo e responsável por inúmeras chacinas ao redor do antigo império maia, incluindo o dr Baviácora, tido como um dos mais sangrentos da história . Uma vez vingado ele se sentou ao lado do corpo e chorou toda a dor reprimida por todos esses anos. No dia seguinte policiais não corruptos do México - algo tão raro quanto água no deserto -, aliados a diversas siglas do país vizinho do norte o encontraram. 

Esteban não sabia, mas havia uma gorda recompensa pela captura ou entrega do corpo morto de Pérez. Diversos zeros, uma identidade nova e residência fixa na grande águia. Nada disso traria sua família ou seu cão - morto por idade em uma das muitas cidades que morou e trabalhou para juntar dinheiro. Aceitou a recompensa. Atravessou a fronteira certo de que, um dia, alguém iria procura-lo para vingar Pérez. Enquanto esse dia não chega Esteban voltou a trabalhar no que sempre lhe fez feliz, abriu uma oficina mecânica, casou-se novamente, adotou outro cachorro e, logo há de ser pai de um menino.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Moeda

Chicago, 1953.

A Grande Depressão ainda assolava a grande cidade do centro-oeste norte-americano. Se for citar os efeitos da segunda guerra então a massa de prédios estava fadada a sucumbir frente ao seu próprio tamanho, tal qual uma estrela super-nova se destrói primeiro numa expansão muito acima do seu normal e depois numa constrição tão rápida que acaba por colapsar todo o sistema tornando a estrela ou uma estrela anã ou um buraco negro. E era assim que Joe Stone via a cidade caminhar: na direção de se tornar um imenso buraco negro onde nada que entrasse saía, não inteiro, mas sim deformado. 

Como bom jogador que era gostava de dar à sorte seu próximo passo: cara iria embora dessa pocilga, coroa ficaria aqui. Sem muita esperança arremessou a moeda ao ar. Enquanto o pequeno artefato redondo girava pensou o quão idiota era em definir seu futuro em uma atitude tão idiota quanto uma moeda. Mas essa não seria nem a primeira e nem a última vez que ele tomaria esse tipo de atitude. Aquela Libra o acompanhava desde quando a guerra estourou no velho continente e ele, por temer ser convocado a ficar nas fileiras, abandonou tudo que tinha para ir à América. 

Teve vinte e dois dias - tempo da travessia - para pensar o quão tresloucada havia sido essa escolha. Nesses dias todos conheceu gente interessante e interesseira (mais do segundo tipo). Joe era do tipo que gostava de analisar as pessoas afim de conhecer seus defeitos, suas fraquezas. Tinha tido algumas aulas de psicologia quando mais moço, mas a guerra acabou por lhe fazer desistir e entrar no negócio da família. No vigésimo dia de viagem conheceu Joanne, francesa de Calais, beirando os trinta anos, dançarina de cabaré. Passaram alguns anos juntos vagando pela região de Nova York, ela trabalhando de garçonete e ele de taxista. Não era preciso ser um especialista em adivinhar que essa relação não duraria muito. Aliás, tendo durado cinco anos foi uma vitória imensa do acaso. Ela acabou ficando com a filha do casal - Michelle - e era quem pretendia dar uma educação esmerada e leva-la de volta à França, coisa que Joe, como bom britânico, não gostava nem um pouco. 

Depois da separação ele visitou a filha duas ou três vezes, até que ter sido preso os afastou. Joanne e Michelle voltaram para a França, foram para a cidade de Le Havre na Alta Normandia, fora isso ele não sabia mais de nada. Três anos após sair da cadeia - onde cumpriu pena por agredir um passageiro esnobe que o pegou roubando - Joe resolveu sumir da Grande Maçã seguindo para o interior. Vagou por pequenas cidades e acabou em Chicago. Os primeiros anos haviam sido bons, tinha melhorado suas habilidades de punguista na cadeia. Seis anos correram sem grandes percalços. Até o momento em que a moeda foi ao ar: a polícia estava fechando o cerco aos punguistas. Ou ele arriscava ficando aqui ou ele sumia. Michelle estaria hoje com o quê? Nove anos, talvez oito, talvez dez. Um pé apoiado na parede de um beco sujo onde um bêbado dormia, uma velha Libra Britânica e sua sorte rodando no ar. Cada face da moeda que virava o fazia pensar nas mil possibilidades de cada escolha. 

Enfim a moeda começou a cair. Tomou a moeda na palma da mão direita, fechou os olhos colocando a moeda nas costas da mão esquerda. Suspirou pensando cento e cinquenta mil coisas. Em um movimento inventado décadas mais tarde pelo cinema a imagem da mão revelando o objeto redondo ocorreu em câmera lenta. Um sorriso de canto, um toque na aba do chapéu e um agradecimento pela companhia do bêbado e a decisão foi tomada. Assim. Na sorte.

domingo, 20 de novembro de 2016

Os 29


É estranho chegar aqui, olhar a data e ver que tenho vinte e nove (mentira, estou escrevendo dia onze de novembro e não hoje, essa é uma beleza do blogger em me deixar programar postagens) e pensar que não tenho muito a comemorar. Não tenho grandes realizações... começo desse ano terminei o livro da ruiva (Lis pros intinos, Elisa pros ainda não-iniciados) e aí começou a correção feita por minha mãe e agora é pegar a revisão dela e corrigir no arquivo digital e procurar uma editora ou me publicar sozinho. Sei que ter mais de trezentas e cinquenta páginas escritas de um livro é coisa pra caralho, mas eu não vejo tudo isso sabem?

A mesma coisa se da com o que eu "conquistei" nos últimos tempos. Um PC bom pra jogos, pra editar vídeos, pra editar fotos, áudio, assistir netflix sem medo dele desligar do nada como meu antigo... troquei de celular (agora posso jogar pokemon go, atrasado, mas ainda não me encheu o saco, então vamo que vamo rs), comprei alguns livros, alguns carrinhos (como eu tinha "planejado" na crônica do ano passado) e, pra quem acompanha meu instagram viu que comprei uma (duas) estante(s) pros carrinhos. E a Eleanor segue bem, ela anda com um rangido estranho nos rolamentos da roda traseira... mas vou resolver isso na segunda (hoje, dia onze, é sexta) então nem é algo que valha tanto registro.

Não sei como vai ser ano que vem o último ano de faculdade, tenho que achar outro estágio, tenho que tentar não me preocupar com coisas que estão acima da minha alçada e que, no momento, não posso resolver. Claro que é mais fácil de fazer do que de falar. Isso sem falar das inquietas sombras que... bem, estão no seu meio dia (ao nível dos pés, pequenas, mas ali, presentes) e dificilmente vão me abandonar.

Talvez seja uma das "datas-que-vim-ao-mundo" mais melancólicas dos últimos tempos. Sei lá sabe? Não sei se é o momento do mundo, se é cansaço, fadiga, stress ou todas as merdas do mundo somadas. É, eu sei, hoje o dia devia ser de "comemoração", mas eu já disse que não comemoro um ano a mais, só a menos. Uma das tradições do dia é trollar minha madrinha com a "e o coraçãozinho?" vindo com um "ta bem, doze por oito". Outra tradição (eu gosto delas, me fazem sentir ligado ao que o mundo deveria ser, a falta de tradições faz do povo seres com muitos instintos e pouca coisa humana dentro de si) é agradecer a todos os amigos e amigas que - ainda - me aturam, sobretudo quem me conhece a muito mais tempo e conhece coisas profundas minhas.

Enfim... ah sim. Sobre todas as "conquistas" citadas lá em cima... livros, carrinhos, estantes, PC, celular, manutenção da Eleanor eu olho pra todas elas e cantarolo Ouro de Tolo, do Raul (ouça aqui) "eu devia estar contente por ter conseguido tudo que eu quis... mas confesso abestalhado que estou decepcionado, porque foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto 'e daí?', eu tenho uma porção de coisas pra conquistar e eu não posso ficar aqui parado".

Dando de ombros eu torço pra que os vinte e nove sejam vinte e oito vezes melhor do que foram os vinte e oito.

________________adendo________________

Como eu não queria alterar o já escrito (acredito que tudo que escrevo aqui é o mais próximo do meu "eu-verdadeiro" que, provavelmente, todos vocês irão conhecer, logo, reescrever algo tão pessoal quanto a crônica-de-ano-novo, por isso a parte ali de cima, que escrevi dia onze fica ao posto que essa nova parte (que, juro, não sei se vai sair muita coisa, porque estou escrevendo dia dezoito de novembro, meio da tarde, ouvindo música estranha e pensando que minha bateria pessoal acabou e ainda falta pouco menos de um mês pro fim das aulas) vai ser um complemento (ou não) do que escrevi ali em cima... porque, convenhamos, escrevi aquela parte ali em um momento de inquieta sombra e... então.

Como não planejei essa segunda parte vou escrevendo o que me vier na cabeça e, assim, espero que saia algo minimamente compreensível, haja visto que eu estou pensando mil coisas além do aqui-agora nesse momento.

A verdade é que, apesar da imensa quantidade de merdas que aconteceu esse ano (pessoas "se foram" e não sei se voltam) acho que o saldo fica positivo. Mas não fica muito não, fica tipo balança comercial que fica zero ponto dois por cento acima do mesmo período do ano passado. Claro, houveram inúmeras conquistas, inúmeras vitórias e coisas-que-eu-fiz-que-deram-certo. Agora, faltando poucas horas pro final do expediente, pro final de semana e para o domingo (que é hoje, que vocês estão lendo) eu fico pensativo frente ao que vem por aí e... okay, eu já tinha prometido (e quebrado a promessa várias vezes) que não ia me preocupar na véspera. Mas eu não consigo, sou ansioso demais. Nessas férias, inclusive, quero ver se aprendo algumas técnicas pra aprender a controlar a ansiedade e se coloco alguns projetos que estão no papel em prática (se bem que meu livro está no papel e... bem, vai continuar no papel, uma vez que... ta, deu pra entender), se vocês me seguirem (se não seguirem também, tanto faz) o blog aqui e o instagram (já citado, não vou linkar de novo) irão descobrir o que ando tramando e o que consegui fazer.

Em todo caso é isso. Precisava fazer esse adendo "não-tão-inquietas-sombras" na postagem original que estava meio sombria... se bem que me dei bem escrevendo coisas sombrias (postagens antigas que o digam) e... chega. Voltamos à programação normal. A propósito: ouçam a playlist que citei ali embaixo, no decorrer d'Os 29 (ou seja, um ano) vou colocar músicas nela.

________________/adendo________________

E, como esse ano eu não consigo fixar em uma música só, fiz uma playlist que, provavelmente, vou ampliar conforme passem os dias até chegar o dia (lembrem-se, escrevi dia onze e não hoje, dia vinte) e... bem, ouçam-na clicando aqui.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Varanda

A cadeira que Janaína havia colocado na varanda sempre acabava ficando na chuva e isso tratava de deteriora-la mais rápido. Mas ela não ligava, gostava de sentar na varanda, fones nos ouvidos, celular no colo e pensar na vida e em tudo que acontecia. Mesmo estando potencialmente na rua mais parada da grande metrópole ela gostava de sair e ver o movimento. 

Passava horas ali, olhando a imensa massa de seres humanos e sua obra. Os vizinhos certamente a achavam estranha, reclusa... mas aos poucos viram que ela era assim e que isso não fazia m à ninguém. Se, por um lado agora ela estava feliz por sua amiga ir atrás de algo que fazer da vida ela se perguntava o que ela estava fazendo da vida. Parece que o jogo virou. Ela estava fazendo de si o que não sabia. Faculdade, saídas solitárias pra satisfazer o corpo em detrimento do espírito não era algo que ela tinha planejado pra si mesma. 

Verdade seja dita: ela estava de saco cheio de tudo. Queria largar tudo e ir embora, qualquer lugar. Fazer como Helena, uma carta de adeus e tchau mundo atual. Porém... ela morava sozinha. Pra quem deixaria a carta? Enquanto via o dia acabando e os pássaros passando rumo a seus ninhos ela seguia ali, prestes a voltar com as velhas praticas, as velhas técnicas , as coisas que havia dito pra si mesma que não voltaria à praticar. Dilemas. A vida se resumia a um dilema depois do outro, um pior que o outro, uma merda maior que a anterior pra fazer descer no fino ralo da existência. A dúvida ficava sobre o quanto o desentupidor , a soda cáustica aguentariam jogar tudo cano abaixo. 

Lembrou de um filme, algumas músicas quando o vento frio assolou seu pé - sempre teve muito frio no pé, desde quando morava no sul - soltou um suspiro. Talvez se chacoalhasse o pote ainda tivesse um pouco de soda que jogaria mais um tanto de merda ralo abaixo, ou quem sabe o desentupidor ainda estivesse por perto e... frio no pé. Saiu da sacada, mas não sem antes colocar aquela cadeira pra dentro. Se ela não gostava de frio nos pés por que uma cadeira haveria de gostar? Pronto. Cadeira do lado de dentro. Céus, estava preocupada com os sentimentos de uma cadeira. Pensou rindo no nível de esquizofrenia que havia chego. Era uma boa resposta, tão boas quanto as meias nos pés. Odiava frio nos pés.

domingo, 23 de outubro de 2016

Rodoviária

Ela sabia que era a hora. Dizem alguns que chega uma hora que da um clique e a pessoa acorda da sua inércia, daquela sua letargia, daquela coisa de vivenciar e sentir tudo que se passa na sua vida pra um estado onde tanto faz. Helena havia chego nesse instante. O clique havia sido tinham algumas horas, por isso ela estava com aquela mala diante da cama e as roupas entrando dentro dela. E daí que eram três e meia da manhã? E daí que amanhã de manhã Janaína tinha combinado de vir vê-la? Tudo que queria era uma fuga. 

Com a quantia que tinha guardado nesse ano todo de sobriedade poderia comprar uma bela passagem de para algum lugar distante o suficiente. Temia o que os outros diriam. Por isso enquanto colocava as camisas, calças, meias, calçados, documentos, um pato de pelúcia que havia ganho de Janaína pensava em quais palavras escreveria em sua elegia frente à vida que levava. 

Nesse ano de sobriedade finalizou o ensino médio, chegou a começar a estudar para algum vestibular - psicologia, era o que todos diziam - e descolou um emprego em meio período que lhe permitiu ajudar financeiramente em casa e ainda comprar coisas para si. Claro que tinha uma caixinha onde escondia algum dinheiro para "algo extraordinário" que faria. Sorriu de canto confrontando o espelho da penteadeira. Era agora o tal "algo extraordinário"? Mais ou menos.

Mais porque sair como ela estava pretendendo era, sim, extraordinário. Era aquela coisa de ruptura com o que se tem indo rumo ao que não se faz ideia do que seja. A sensação de estar fazendo a coisa mais idiotamente genial que alguém, na situação dela, poderia fazer. Claro que era algo tresloucado e relativamente "do nada", mas... as melhores coisas não são feitas assim em um impulso?

Menos porque sair como ela estava pretendendo era, sim, extraordinário. Era aquela coisa de ruptura com o que se tem indo rumo ao que não se faz ideia do que seja. A sensação de estar fazendo a coisa mais idiotamente idiota que alguém, na situação dela, poderia fazer. Claro que era algo tresloucado e relativamente "do nada", mas ... as maiores merdas não são as coisas feitas assim?

Por um instante olhou o espelho. Se questionou se devia ou não fazer isso. Tinha a resposta. Sabia o que devia fazer. Se sentou na cama um instante. A mala pronta. O coração cheio de desejos. A alma cheia de vontades. Lembrou daquela música do Nenhum de Nós, cantarolou baixinho enquanto se sentou na penteadeira, tomou uma folha de papel nas mãos, uma caneta preta. Respirou fundo, sorriu, chorou e naquela meia hora escrevendo sem parar, ela percebeu que, o que fazia agora, era importante sim. E não era uma fuga. Era a busca por um reencontro. Um reencontro consigo mesma. Deixou uma pequena estátua de bailarina sobre o papel, a caneta voltou à caneca onde residia, suspirou e saiu em direção à rua. Da rua um carro que chamou pelo aplicativo, de lá para a rodoviária. Escolheu o lugar por sonoridade. Viu o sol raiando pela janela do ônibus já na estrada, ainda teriam centenas de quilômetros até seu novo destino. Adormeceu com essa esperança e um fino sorriso nos lábios.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Vem Chuva

Eu não sou poeta, já reneguei inúmeros poemas meus à uma gaveta imaginária pra que eles nunca saíssem de lá, mas um dia desses, uma chuva se desenhava no céu noturno e ela, a Deusa da Inspiração veio e me acertou com estes versos, ei-los:



Vem Chuva

Vem chuva
Vem lavar os telhados
Vem molhar as ruas
Vem chuva
Vem embalar o sono do trabalhador, do velho, da criança
Vem chuva
Vem trazer mais cedo o filho que saiu e tranquiliza o coração da mãe que fica aflita a sua espera
Vem chuva
Vem regar as plantas
Vem molhar as arvores
Vem chuva
Vem trazer beijos molhados
Vem trazer paz pra criança
Vem regar o jardim de bonança
Vem chuva
Vem acalmar o mundo que sofre
Vem acalmar a alma de quem morre
Vem chuva
Vem dos céus, enviada divina
Vem molhar do peão à menina
Vem cobrir de bênçãos e ser cortina frente dum novo despertar
Vem chuva... vem.

domingo, 9 de outubro de 2016

Impacto

Dia desses estava aqui pensando em tudo que eu faço, tanto publicitariamente quanto em aula, no estágio, na relação com meus amigos, minhas amigas, colegas e pessoas que eu não conheço que, quando há uma troca de olhar eu respondo com um sorriso. Depois eu lembrei do que o Teddy Corrêa (vocalista da Nenhum de Nós) falou em um TEDx (procurem no YouTube) sobre o poder da música da banda dele e o quanto isso pode mexer com as pessoas. Posto isso fiquei relembrando meus trabalhos, minhas relações e o que eu escrevo de forma despretensiosa aqui no blog.

Acontece que, esses dias, minha mãe terminou de revisar/ler meu livro (quem já me conhece sabe a história da ladra ruiva, quem não conhece poderá conhecer quando eu publicar ;) e ela sempre diz que toda história tem que passar alguma mensagem, alguma lição, algo que agregue nas pessoas que as leem. E eu, como não achava nada demais na minha história tinha pra mim que não teria nada de "ohhhhhh, que livro incrível, que obra, mudou minha vida e bla bla bla", era só um livro que escrevi, literalmente, quando tinha vontade. Por isso levei praticamente seis anos pra escreve-lo. Mas voltando ao ponto da minha mãe ter lido (ela foi a primeira pessoa a ler ele inteiro, organizadinho, nem eu me prestei à isso) ela disse que, sim, meu livro tinha uma lição, uma mensagem de uma pessoa que busca uma espécie de redenção, busca uma forma de resolver seus problemas... e isso me deixou pensativo por dias. Até agora. Domingo, dois de outubro de dois mil e dezesseis, três e pouco da manhã. Muito provavelmente a data de publicação não é essa porque eu não quero publicar nesse horário ingrato, acho que esse texto merece ir além de uma repostagem de link no facebook e outra repostagem no twitter onde uma ou duas pessoas vão curtir, alguém talvez comente. Longe da presunção esse texto quero mais, acho que ele vale.

Mas, voltando ao que me colocou a pena à mão (termo lírico, uma vez que escrevo direto no teclado) e me pos a escrever: Desde que eu comecei a editar os áudios pra um programa de rádio da minha faculdade (O "Na Ponta da Língua", tem página no facebook) eu sempre quis colocar minha marca ali, meu detalhe próprio, minha cara naqueles menos de dois minutos de diálogo e alguma dúvida/curiosidade sobre língua portuguesa/personalidades/curiosidades da cultura pop. Aí, agora, depois de ter revisto aquele TEDx do Teddy eu fiquei pensando que eu sempre quero passar algo pra quem "consome" o que eu faço. Não quero só fazer algo pra ficar bonitinho ou coloridinho. Quero fugir da "parada de sucesso" (termo usado pelo Teddy) no que faço. 

Se eu não vou ser melhor aluno da sala. Se não vou ganhar o mérito estudantil. Se não vou me sobressair - pelo menos por enquanto. É algo que vai de encontro com o que li dia desses sobre pessoas que se satisfazem com a mediocridade. Por ora eu me encaixo nisso. Fujo um pouco do perfil do publicitário que tem que se pintar de verde fosforescente pra aparecer e vou ser aquele que fica quietinho, na sua, absorvendo os conhecimentos, aprendendo tudo que pode aprender antes de resolver usar tudo.

Eu acho que acabei me perdendo e, se alguém estiver lendo isso, é sinal de que resisti à súbita vontade de fechar o bloco de notas sem salvar o que escrevi até aqui. Espera... hum... ah sim. Esse é meu caminho, não querer parecer melhor que ninguém. Ninguém é melhor do que ninguém porque viu uma série diferente. Porque leu um livro em outro idioma. Gosto de pensar na vida como um jogo de videogame onde cada coisa nova que fazemos é uma conquista desbloqueada, mais pontos de experiência pros próximos desafios. Não preciso me exibir e querer achar que estou acima - esse é o meu princípio em ser mediócre - e que, por isso, posso fazer o que eu quiser. Não vou entrar em casos pessoais, mas já discuti com pessoas por causa das atitudes delas. Atitudes egoístas das pessoas em achar que, porque elas tem uma conquista desbloqueada a mais que eu, elas podem pisar, pagar de bilhete premiado. Pois tudo que fazemos (ufa, me achei) impacta o outro. Se uma pessoa que eu conheço passa por mim e não me cumprimenta eu penso de duas uma: ou ela está com problema ou eu fiz algo à ela. Mas, quando isso se repete dia após dia, semana após semana, passo a achar que a pessoa se acha o pacote de salgadinho com dois tazos. Resumo tudo que escrevi até aqui com a minha resposta e uma pergunta: Eu quero fazer algo que agregue coisas boas, boas referências, novas culturas (fora da "parada de sucesso"), algo positivo, quero obter a imortalidade que o Kundera disse só ser possível através da arte, agora, parafraseando minha mãe, tudo que agrega algo a alguém é arte. Esse vai ser o meu jeito publicitário de ser, contra a "parada de sucesso", contra a massificação, vou pagar por isso? Com certeza. Mas poder deitar a cabeça no travesseiro tranquilo de que algo que eu fiz fez - na pior das hipóteses - alguém sorrir já me faz querer isso como objetivo, como sonho (isso me lembrou a última aula com o professor Fogaça, onde ele questionava a gente sobre nossos sonhos), meta de vida. Não ligo de viver sempre com um carro não zero, uma casa pequena arrumadinha. Se eu puder viajar, absorver conhecimento, cultura, coisas pra passar pras pessoas... já me vai ser tudo que preciso.

E você, leitor, leitora, como você quer impactar o mundo?

domingo, 2 de outubro de 2016

Kunoichi

Dizem que no calor de uma batalha é que se forja um guerreiro. Janaína devia ser guerreira quando, do seu acampamento, colocou a máscara que todas as Kunoichis usavam antes de ir para a guerra que ocorria não muito longe de seu acampamento. Checou uma última vez todas as ferramentas que precisaria para a batalha. Tudo estava ali dentro do seu alforje. Garantiu que a vela que usou para essa conferência estivesse bem apagada pois não queria sua tenda em chamas. No percurso até o campo de batalha passou por diversos guerreiros feridos voltando para os alojamentos, algo que sempre a fazia perguntar se realmente era aquilo que ela queria.

Nunca teria essa resposta. Talvez nem quisesse essa resposta por enquanto. Não estava em condições de ficar questionando os motivos da guerra nem porque tanta gente lutava ferrenhamente enquanto os coroneis ficavam em suas confortáveis tendas. De um desses generais recebeu sua missão: se infiltrar em território inimigo, obter informações importantes e, se possível, não ser descoberta. Alguém mais atento notava que o alforje de Janaína só tinha um dos lados ocupados quando ela saiu de seu acampamento. Pois agora, uma vez com missão, ela preencheu o outro lado do alforje dando mais estabilidade ao carrega-lo.

A verdade que um estágio em um jornal não era o que Janaína sempre quis. Seu curso nem era esse. Mas tinha contas pra pagar e, por enquanto, era o que tinha pra hoje. Fotografia sempre foi uma de suas paixões. Mas a fotografia de paisagens - naturais ou urbanas - e não a desgraça humana. Não que fosse tão misantropa, porém a ideia de registrar protestos, cenas policiais ou qualquer outra coisa relevante pra esse veículo popularesco era válido e bem visto aos olhos do coronel. Coronel mesmo, reformado do exército, dispensado por excesso de contingente. Um país em tempos de paz é um saco pras forças militares.

Aquele dia tinha ouvido falar de um protesto que ocorreria no centro da cidade e que, provavelmente, haveria confronto de estudantes - como ela - e policiais. Janaína tinha nas mãos uma câmera que valeria uns cinco ou seis meses de salário. Mais se contar o valor das lentes. Ao chegar no lugar logo sacou a máquina e tratou de fazer dezenas de fotos dos alunos, das faixas, das reivindicações, do que eles queriam. Melhores condições. Justo. A polícia observava de longe. Que fiquem lá. Ficou duas horas, o protesto se dissipou sem balas de borracha, sem bombas de gás lacrimogênio, sem bombas de efeito moral. "Chato e sem graça" aos olhos dos editores do jornal que, certamente, ignorariam a maioria das fotos de Janaína e, no máximo, noticiariam o relato dela com aquela foto que não mostrava rostos nem faixas de reivindicações que eram contra o governo e, por tabela, contra o jornal. Por tabela porque o coronel tinha ajudado o governador a se eleger e como "agradecimento" o jornal havia vencido uma licitação milionária que valeria alguns anos de sobrevida à uma gazeta que vendia o suficiente para se manter com a equipe minima. Porém Janaína se deu conta de que, tanto ela quanto os outros três estágiarios, só estavam ali por essa verba extra. Ou seja, indiretamente ela era uma peça dessa máquina podre. Pensar coisas assim deprimem.

No caminho de volta pro jornal fotografou idosas em uma praça que faziam tai chi chuan. Conversou com a coordenadora, havia uma moça da faculdade de Janaína que estagiava ali e havia outra vaga, mas pra trabalho voluntário. Voluntariado era lindo, mas não ajudava a pagar os boletos que insistiam em vir mês após mês. Contrariando Nando Reis ela dizia que o mundo não é bão, Sebastião. Antes de entregar matéria pronta e as fotos descarregou as fotos das idosas e guardou pra si. Quem sabe conseguisse negociar e publicar em algum jornal menor, quem sabe o jornal da faculdade. Era uma.

Findado o estágio nossa nobre Kunoichi esvaziou o alforje e seguiu para a faculdade. Comeu um-qualquer-coisa no caminho. Seu curso de publicidade insistia em tentar transformar todos os seres sem iluminação - alunos - a serem aquele publicitário fodão, que ganha mil prêmios, que vai pra cannes todo ano, que abre agência aos vinte e seis, que se esgota aos trinta e dois, que vende a agência aos trinta e quadro, que aos trinta e cinco descobre uma úlcera e que, na porta dos quarenta, se sente frustrado com tudo e, ou vai dar aula, ou vai trabalhar em algum lugar pequeno. Janaína não curtia essa forma de viver. Ela, apesar de ter vivido boa parte da vida em uma cidade de duzentos mil habitantes sempre teve um lado com a natureza, com as coisas naturais, com o que não pode ser comprado, com as sensações.

Mais um dia acabou. Hora de driblar os convites pro "novo bar que abriu" ou praquele show daquela cantora que está bombando. Não. Tinha uma coisa pra fazer nos próximos dias que precisava fazer. Mais do que ir em bar, show, estágio, faculdade, casa, puta que pariu. Tinha de ir visitar Helena que havia respondido a mensagem. Dizia estar bem, que as coisas estavam se ajeitando e que também sentia saudade da amiga. Ao entrar em casa sorriu de canto tomando desse protótipo de escritor a pena e assumindo os escritos... Hey, Lu, esse é minha terceira crônica em sequência, posso pedir música? Posso né? Quero pedir Nenhum de Nós - Aquela Estação porque sei que escreveu outro texto ouvindo eles e que agora está assistindo enquanto escreve o DVD Acústico e Ao Vivo Dois. Agora pode pegar a pena de volta e terminar a crônica... Bom, depois de quebrar a quarta parede Janaína preparou algo para comer, tomou uma ducha rápida, colocou algum filme antigo no netflix. No próximo final de semana visitaria Helena. Foda-se faculdade, estagio... precisava de alguém que lhe conhecia a fundo e estava desatualizada. Por já ter citado Nenhum de Nós cantarolou "por favor me traga uma notícia, mas que seja boa" enquanto o filme fechava os créditos e se deixava dormir.

domingo, 25 de setembro de 2016

Deseo

Dizem que o corpo tem lá seus desejos e Janaína, do alto dos seus vinte e tantos anos não ousava deixa-los aprisionados. Claro que não teria as atitudes tresloucadas que Helena tinha, mas ainda assim gostava de dar vazão ao que tinha em mente. Ainda que lhe custasse algumas horas que não levariam a lugar nenhum. Aliás, o conceito "lugar nenhum" para ela também era um lugar. Afinal o Coragem morava lá. E se alguém mora em Lugar Nenhum ele existia. Mesmo que fosse num desenho animado.

Havia ouvido falar de alguns amigos/conhecidos de um PUB que tinha um ambiente legal, uma música boa, bebida gelada e não tão cara. Janaína, como boa ouvinte, ouviu a informação e guardou, um dia ela seria útil. E, nessa noite de sábado em que o inverno não tem mais saco de ficar esfriando tudo e o verão ta com preguiça de chegar que essa informação veio a tona. Se arrumou, colocou uma saia, blusa meio aberta, sandália de salto baixo. Se arrumou em menos de dez minutos. Certamente Helena ou qualquer outra de suas amigas, se soubessem que ela havia se aprontado pra sair em menos de dez minutos diriam que ela estava muito básica, porém se as mesmas amigas achassem que ela levou horas se arrumando diriam que ela estava deslumbrante, pronta pra matar. Nunca entendeu essa coisa de mulher. Não que fosse do tipo que não ligava, mas... é. Não se importava tanto com isso.

No elevador que - milagrosamente - estava funcionando pensou pra que reino estava indo dessa vez. Será que nesse lugar haviam príncipes? O taxi estava lhe esperando. Deu um endereço aproximado porque sabia que, se algum carro entrasse naquela rua badalada dificilmente sairia em minutos. Sempre pensou em facilitar a vida de todos e, por isso, sempre foi tida como meio estranha desde a época da escola. Pensou um instante nesse fato e sorriu de canto. Pagou ao homem de meia idade, camisa listrada e uma boina daquelas tipo do Angus Young. Caminhou não mais que dois minutos passando em frente de lanchonetes onde grupos de amigos, grupos de amigas e grupos mistos faziam refeições, riam, bebiam. E Janaína ali, sozinha. Na bolsa nada muito além do celular, cópias dos documentos, dinheiro suficiente para beber alguma coisa e depois voltar de taxi. 

Olhou de soslaio na fachada. O lugar era esse. Não tinha combinado com ninguém. Não gostava dos amigos que tinha a ponto de chama-los para sair. Quer dizer, Helena poderia chamar, mas ela estava no rehab ou já tinha saído? Merda. Por um instante pensou o quanto havia se afastado dela. Sentiu falta. Mas, dizem que notícia ruim chega logo. Então ela devia estar bem. Certo? Certo. Qualquer dia iria ao encontro da amiga para ver o que aconteceu. Deu passagem a um grupo pequeno onde uma moça bonita parecia ser a abelha rainha seguido de zangões machos e fêmeas que entraram cantarolando. Imediatamente ao passar a porta sentiu o cheiro de tabaco e a nuvem de fumaça que pairava na altura do teto. Devia ser o único lugar da cidade onde era permitido o fumo em local fechado. Fez uma careta mas resolveu dar uma chance ao local. Pediu uma gim tônica enquanto pensava no Axl Rose bebendo enquanto tocava November Rain. A música era boa, o barman além de bonito era talentoso com o drink, a localização era boa... sorriu pensando em virar crítica de PUBs, bares e afins.

Logo um tipo mandrake apareceu do seu lado puxando papo. Daqueles típicos que não tem uma boa prosa, corpo normal de lugares como aquele. Tratou de despacha-lo em poucos instantes, disse estar esperando a namorada. Assim que o rapaz se afastou ela riu e pediu mais um drinque. O grupo de abelhas agora estava no meio do salão dançando algum rockzinho antigo que aquela banda tocava. Resolveu assistir a cena. A cada pessoa que passava pela porta uma parte da fumaça era levada pra fora. Numa saídas de fumaça viu que uma fina garoa molhava a rua. Despachou mais um pretendente pensando se teria culhão de ficar com uma garota. Não era impossível, mas também não era plausível. Seus desejos pediam outra coisa. Não uma língua... quer dizer, não só uma língua. Um rapaz entrou em passos galopantes. Decidido foi reto na rainha da colmeia. Focou mais a atenção naquele cortejar. Um, dois minutos depois ele a levou pra fora com um sorriso nos lábios, sentiu na expressão dele a vitória. Merda. Hora de procurar alguém. Um dos zangões não era de se jogar fora e parecia sobrar no que sobrou do enxame.

Desceu do banquinho colocando a comanda na bolsa. Sentiu o efeito do álcool. Não que fosse fraca para tal, mas estava de estômago vazio. Não estava bêbada, mas também não estava sã. Sorriu ao desconhecido. Dançaram. Tentaram se apresentar - em vão, o barulho não era tanto, mas o suficiente para abafar vozes. Passavam das três da manhã quando ela deu a ideia de saírem dali. Em uma sociedade como a atual ainda era relativamente mal visto uma mulher chamar o cara para irem para um lugar mais reservado. E daí? Longe daquela coisa do emponderamento Janaína não reprimia seus desejos. Ele tinha carro, parado logo ali. Enfim conversaram mais um sobre o outro. Paulo. Futuro engenheiro de uma faculdade de uma das inúmeras cidades-satélite da metrópole. Menos mal, não corria o risco de vê-lo tão cedo novamente. Um motel sugeriu ele. Ela sorriu de canto e topou. Por mais que aceitasse e quisesse namorar alguém a sério não negava os desejos que seu corpo tinha.

Com os primeiros raios do sol seu parceiro se ofereceu em leva-la em casa. Janaína, matuta que só ela, indicou um lugar dezenas de quarteirões longe da sua casa. O rapaz se ofereceu em ir até a porta. "O porteiro da manhã é meio fofoqueiro e o síndico não gosta de gente estranha entrando, sabe?". Paulo entendeu e pediu o telefone dela. Ela disse que não lembrava de cabeça pois tinha trocado recentemente e o aparelho na bolsa estava sem bateria. Tudo perfeitamente crível, pois no pós-sexo, enquanto ele tomava um banho, ela tirou a bateria do aparelho. Ele deixou um cartão profissional dele. Nome completo, telefone fixo de onde ele trabalhava - a firma do papai - endereço, site e o escambau. 

Assim que ele se afastou o suficiente ela caminhou até uma padaria. Comprou três pães e oito fatias de presunto enquanto chamava um taxi. Assim que o motorista - sem a boina do Angus Young, sem camisa listrada e idoso - chegou ofereceu um café que ele aceitou prontamente agradecendo a gentileza. Janaína não ligava de ser assim, não morreria por ter pago um café e ele certamente ficaria mais feliz enquanto a cafeína perdurasse em sua corrente sanguínea. Desceu na esquina do seu prédio vendo que aquele domingo seria promissor pra uma tarde vendo filmes velhos e comendo porcarias. Os trabalhos de faculdade que se fodam. Foi quando sentiu o salto no asfalto, um vento frio por baixo da saia, sorriu pro porteiro. Ao entrar no apartamento jogou toda a roupa dentro da máquina de lavar. Durante a tarde batia tudo e estendia, agora seria muita filha-da-putagem com os vizinhos. Mandou uma mensagem para Helena perguntando dela, pedindo desculpas pelo sumiço e se dizendo com saudade. Suspirou se enfiando em um banho demorado pra tirar o cheiro de tabaco dos cabelos e resolveu mudar os planos. Fechou as cortinas, secou o cabelo, checou se sua mensagem tinha resposta - não -, suspirou novamente, espreguiçou, desligou o celular - agora de verdade - e resolveu curtir o domingo da melhor forma: dormindo. A ressaca e pensar em tudo deixa pra depois.

sábado, 3 de setembro de 2016

Baile de Máscaras

Estava tudo pronto. Ela escolheu o vestido. A carruagem estava a sua espera na porta do castelo. Agora tudo que tinha de fazer era descer os lances de escada, tomar a carruagem e ir para o baile de máscaras para o qual havia sido convidada. Não sentia vontade de ir, seu desejo era ficar em casa com seus livros, suas estátuas, seus anjos e seus demônios, suas luzes e suas sombras. Mas, naquele dia imbuiu-se de vontades e desejos e foi. 

Com zelo desceu as escadarias tentando evitar sujar a barra do longo vestido que trajava, tentava, inclusive, evitar pisar com seu sapatinho de cristal na barra do vestido e cair. Não usou nem o corrimão para não correr o risco de manchar as brancas luvas que lhe cobriam da ponta dos dedos até dois palmos além do cotovelo braço acima. Sorriu para o homem que baixou a ponte levadiça que ligava o castelo à estrada. O cocheiro aguardava ansiosamente por ela em seu vestido deslumbrante. Em uma das mãos trazia uma pequena máscara, dessas dos antigos carnavais de Venezia, daquelas que cobririam parte do rosto e tinha de ser amparada por uma pequena haste de madeira fina.

A carroça tinha uma bela parelha de cavalos que seguiam de maneira ordenada, rápida, silenciosa e macia pela estrada esburacada. Apesar da presença de outras carroças o tempo como se estivesse para chover afastou outros transeuntes de polular as ruas. Ela via o movimento do mundo ao seu redor. Paisagens passavam por sua janela como se fugissem, se aproximassem e fugissem novamente. Assim foi durante três quartos de hora até que, enfim, ela chegou ao imenso castelo onde seria o tal baile de máscaras. Com pronta ajuda do cocheiro desceu da carruagem agradecendo ao bom homem pelo auxilio. Como ato de bondade deu algumas moedas, ao passo que ele sorriu e foi-se embora com a bela carruagem.

Munida de uma pequena bolsa e da máscara na outra mão ela entrou no grande castelo. Outras pessoas já estavam ali, uma pequena camerata tocava as últimas composições de grandes músicos. Ela, alheia à toda essa novidade, ouvia cada música, cada nota, como se fosse a primeira vez - e talvez o fosse mesmo -, logo alguém a reconheceu e veio ao encontro dela com duas taças do melhor champagne que havia, aquele produzido na França. Nesse instante ela se deixou sorrir e esqueceu, por alguns instantes, que por pouco não quis vir para esse baile. Uma. Duas. Três taças depois já dançava com aristocratas de todas as classes, desde donos dos castelos menores, situados às margens do reino até os donos de castelos maiores que este que estavam. A chuva que se desenhou no trajeto do castelo dela até aqui se dissipou e estrelas brotaram no céu juntamente de uma lua minguante.

Logo a noite virou começo da madrugada. Não tinha de sair a meia noite. Não era um conto-de-fadas onde precisava sair meia noite se não tornar-se-ia gata-borralheira novamente. Entre uma dança e outra chamou um mensageiro, seus pés latejavam, suas pernas estavam cansadas, ao jovem mensagem pediu uma carruagem para voltar para seu castelo. Dançou mais duas valsas recém escritas por um grande compositor de uma região no interior do reino até que o mensageiro veio lhe falar que sua carruagem já a aguardava na porta do castelo. Ela agradeceu, despediu-se do jovem aristocrata que valsava.

O cocheiro da carruagem que havia pedido a aguardava. A barra do vestido não resistiu ao baile de máscaras e estava com pequenas manchas de sujeira em suas barras. As luvas tinham um tom levemente amarelado. A máscara e a pequena bolsa eram as poucas que voltavam para casa em seu estado praticamente original. Dessa vez a carruagem levou menos tempo para o regresso do grande castelo até o castelo dela. Os cavalos pareciam os mesmo da vinda, o cocheiro levemente mais idoso. Não haviam tantas interrupções no trajeto. E estrada estava umidecida, o que a fez pensar que havia chovido. Ou isso ou a neblina. Lembrou-se de quando era menina e residia em um grande castelo próximo do mar sempre tinha uma névoa úmida que vinha do mar e molhava as pedras das muralhas e cobria o céu entre o fim da tarde e o começo da noite. Sorriu com essa lembrança entretendo-se ao que o ouvia o cocheiro dizer, provavelmente para seu auxiliar, sobre como estava perigoso andar por estas terras. Ouviu atentamente a história de como o auxiliar havia sido saqueado dias atrás por dois jovens empunhando suas balestras prontos a disparar a qualquer movimento brusco do jovem e de sua passageira.

Tudo isso soava como uma realidade distante para ela. Misturou essa conversa com lembranças do baile de máscaras. Em pouco menos de dois quartos de hora estava em seu castelo. Agradeceu ao cocheiro lhe dando um pequeno saco de moedas que, seguramente, lhe pagavam o trajeto e sobraria para uma generosa porção de aveia para sua parelha de cavalos. Ao descer caminhou até a beira do fosso que separava seu castelo da estrada ouvindo o coche se afastar rapidamente. Logo um dos soldados responsáveis pela segurança a reconheceu - tomou o cuidado de não manter a máscara ao rosto - e baixou a ponte. Tão logo ela entrou a ponte tornou-se a levantar. "Segurança nunca é demais milady, estão havendo muitos saques por estas regiões sabe?". Ela assentiu com a cabeça dirigindo-se para a escada afim de chegar em seus aposentos. Tomaria um banho demorado. Ao fim do banho - preparado com uma habilidade pouco vista por uma de suas camareiras - ela trajou uma roupa leve. O sono ainda não viria por isso ateu-se a um livro que a muito residia na cabeceira de sua cama. Demoraria anos para lê-lo assim, duas páginas por dia. Mas não importava. A ficção a tirava, por alguns instantes, do seu mundo.

Por alguns instantes pousou o livro sobre a barriga já estando debaixo das cobertas. Janaína sorriu ao ver o quanto tinha feito de imaginação do simples baile que foi. Desceu pela escada porque o elevador estava quebrado. O longo vestido era de um brechó, o sapatinho de cristal uma rasteirinha que havia pago barato. Chamou um carro pelo aplicativo. Foi para um baile que alguém da faculdade a havia convidado e colocado seu nome na lista. Um clube caro, daqueles que ela, por conta própria não entraria jamais. Dançou com filhos de empresários ricos, filhos de vereadores ricos, até mesmo o filho de um grande advogado da cidade a tirou para dançar. Ao fim de algumas horas - e algumas latas de cerveja a mais - estava exausta e tudo que queria era ir embora. Como era tarde da noite pediu ao rapaz que cuidava do estacionamento que chamasse um taxi. O taxista, junto com o filho, conversavam sobre a violência e o assalto que o filho havia sofrido dias atrás frente a dois menores armados. Logo ela chegou ao seu prédio. O porteiro da madrugada demorou dez segundos para abrir o portão para Janaína. "Segurança nunca é demais dona, tem muito assalto por aqui sabe? Ta foda.". Coube a ela concordar "Ta foda.". Cansada ela se arrastou escada acima. Chegou no seu pequeno apartamento. Tomou um banho demorado com aquele shampoo que comprou em uma loja cara. Depois do banho largou o celular na cabeceira e ficou pensando em um baile de máscaras para o qual havia sido convidada, onde teria de escolher o vestido, a máscara...

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Aeon

Ele se sentia sufocado com tudo que tinha, com tudo que tinha de fazer. A grande verdade é que, por mais que estivesse tranquilo com relação em não ter mais Ela e nem a pianista ele sentia um vazio no peito. Claro. Sempre tinham os classificados do jornal que poderiam suprir sua necessidade física. Os bares locais para suprir um bom papo... mas ninguém para passar a noite, acordar no dia seguinte ouvindo alguém cantarolando Franz Ferdinand naquele banho matinal. Cada amanhecer era silencioso - salvo pelo vizinho com aquele gosto musical extremamente duvidoso que vez por outra o saudava matinalmente com músicas de corno - e sozinho.

Ele pensava que tudo deveria ter um propósito na vida. Não, ele não era daquele tipo que acredita que um deus tece o destino dele. Pelo contrário, ele determinava tudo na vida dele. Todas as escolhas foi ele que, forçado pelas situações, acabou por ter essa ou aquela atitude. Também não podia culpar o universo. Era... quem era que decidia tudo? Não podia ser só ele. Pensou um instante enquanto saía da cama naquela manhã. Faculdade. Amigos. Compromissos sociais. Trabalho. Tudo isso cansava ele. Enquanto o dia passava pensou no quão não estava bem. Na verdade não estava nem bem nem mal. Só estava. Sem um propósito ou razão. Quando voltou pra casa decidiu que ele cantarolaria Franz Ferdinand. Depois cantaria Ira!. Foi cantando Wander Wildner que lembrou de uma garrafa de vinho.

Nessa garrafa de vinho encontrou a lembrança das conversas que tinha, anos atrás, numa cidade litorânea que morou anos atrás, com uma poetisa. Lembrou-se de que, quando se mudou para essa cidade atual, ele, ao contrário do que toda tecnologia podia oferecer, preferiu trocar cartas com a poetisa. Cartas de papel mesmo. Selo. Correio. Fila. Carteiro. Um real e pouco pra enviar. Dias para chegar. Dias para a resposta voltar passando pelo mesmo processo de carta, papel, selo, correio, fila, carteiro, um real e pouco e dias para chegar. Nas cartas amenidades, desejos, histórias "secretas", sonhos compartilhados. Mas, como tudo e sem saber quem foi, as cartas pararam. Falta de tempo de ambos os correspondentes. Tempo. Esse maldito vilão desde os tempos imemoriáveis. Aeon.

Conversou brevemente com a poetisa por meio dos recursos tecnológicos. Compartilharam o desejo de largar tudo e sair correndo mesmo sabendo que isso não era "permitido". Planejaram se programar e ir para uma ilha famosa. Tudo dependeria da Marianne e seu barrete frigio. Novamente a coisa vinha a depender de algo muito maior que ele. E isso, essa coisa de inúmeras coisas terem de acontecer para uma coisa dele dar certo, o sufocava. O matava. Os próximos dias prometiam ser uma mistura entre stress, irritação e depressão. Suspirou dando fim no último gole de vinho que restou na taça - achava absurdo beber vinho direto do gargalo, vinho demandava sofisticação, por isso a taça - pensando no que precisava fazer, como fazer e quanto isso demandaria dele. Foi então que uma figura que ele conhecia apenas da literatura o chamou. Conversaram horas. Ele sorriu com a auto-intitulada-ruiva-da-outra-dimensão-paralela e concordou quando ela falou de lhe transmitir energia e força para não desistir.

Foi então que ele trocou o sorriso de lado nos lábios. Planejou coisas. Respirou fundo. Precisava ser rápido. Tudo aconteceria como tem que acontecer. Lá fora chovia sem força. A partir de amanhã as coisas começariam a mudar. Ou começariam a começar a mudar. Ele sempre teve problemas para mudar. Ou a mudança vinha de uma vez só ou ele tinha de planejar tudo minuciosamente e morrer a cada passo da mudança. Estava pronto para morrer aos poucos? Teria de estar. A ruiva do universo paralelo falava com ele - mesmo ele achando certa esquizofrenia - que era assim mesmo. Que toda ruptura doi. Era isso. Quantas rupturas ele sobreviveu até hoje? Essa era só mais uma. Mais uma.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Hubb

A vida onde Aleph havia nascido não era boa, mas também não consigo chegava a ser ruim, as perspectivas de estudo e de trabalho não eram as melhores. Foi assim, nesse turbilhão de coisas que ele se deixou convencer pelo discurso de um grupo paramilitares desses que vez por outra matam uma centena de pessoas. Recebeu treinamento, sabia usar um kalashnikov como poucos da sua antiga vila, conhecia o complexo onde estava como a palma da sua mão, sabia os corredores, os túneis por que interligavam cada prédio... ele tinha encontrado um propósito pra sua vida. Farlabah, ao contrário dele, não se juntou ao grupo por vontade própria, mas não era prisioneira, ela podia ir embora a hora que quisesse. Mas, como ela mesma dizia, por enquanto estava bom. Aleph, por um acaso trombou com ela num dos tuneis. 

Ela estava cansada da violência que o grupo propagava, mas ele seguia cego, iludido pela propaganda do grupo. Eles não sabiam, mas um amava o outro. Por isso ele foi atras dela quando ela recolheu seus poucos pertences e estava indo pelo caminho que saía do complexo. Ele, desesperado sem saber o que sentia sacou a pistola e apontou para ela. Uma ameaça. Bateram boca. Quando ela deu as costas para ele, ele, com a mão esquerda, a segurou pelo braço. Ela tentou se soltar. Foi aí que veio o estampido. Lado esquerdo, próximo ao rim. Era fatal. Não imediato. Por isso mesmo ela tentou tomar a arma dele. Veio  segundo tiro. Meio do peito, pouco abaixo da caixa toracica. Os dois corpos caíram juntos. No ar as mãos se entrelaçaram. Descobriram o sentimento na hora do fim. Bem dizem que o ápice é a melhor coisa da vida. Vida. Ele dezessete. Ela dezesseis. 

Vida. 

Morte.



Nota do autor: "Hubb" é a pronúncia de "amor" em árabe, se fosse ser escrito em alfabeto árabe seria: حب

terça-feira, 26 de julho de 2016

Álibi e8s2: Parcas

E assim chegamos a esse ápice. A glória dos dois lados. Sem uma explicação plausível de como eles chegaram naquele instante, daquela forma, naquela igualdade de condições dignas de colocar a balança em um equilíbrio tão perfeito que nem mesmo o signo de libra - comum aos dois - era tão exata em sua precisão equilibrística. Tudo por um descuido. Um instante de vacilação bastou para esse momento. Para os que acreditam em destino esse era o destino deles. 

Não cabe nesse momento a explicação de como ou porque eles haviam chegado nesse local, nesse instante, rigorosamente ao mesmo tempo. A "culpabilidade" do ocorrido poderia ser atribuída às Parcas, mitológicas criaturas que teciam o destino. Curioso em se pensar nisso pois Einstein imaginou o espaço-tempo ("local" onde os eventos ocorrem) como um tecido. Mais irônico disso seria ocorrer numa facção onde bolivianos costuravam a próxima tendência da moda a esforço escravocrata. Não era o caso. Se a situação fosse obra de um escritor extremamente suscetível à clichês ele declinaria a esse recurso. Mas, como já foi mencionado, não era o caso. 

Aliás, cabe dizer que não era uma obra escrita. Eram apenas fatos verdadeiros sobre o ocorrido que eram escritos durante o momento em que eles aconteciam. Os jornais do dia seguinte. Os portais de notícia. As redes sociais. Os programas de televisão e de rádio podiam contar a história da sua forma. Ou incriminando Sophia e absolvendo Sérgio ou condenando Sérgio e absolvendo Sophia. Condenando ou absolvendo os dois. Porém a verdade era o descrito aqui. Ao vivo. Como se houvesse uma câmera no ambiente que gravasse todas as cenas e que, agora, eram transcritas.

Verdade seja dita: Aquelas cenas de seara mexicana, onde um aponta a arma para o outro nunca fizeram o menor sentido se ambos estavam um afim de matar o outro. Quem atirasse primeiro ganhava o duelo. Fim. Claro que a dramaticidade da cena era aquele diálogo que não apareceu durante o filme inteiro e que, agora, explicava toda a história. Toda a rixa entre as personagens. Em cinco ou seis minutos de diálogo regado a flashbacks e a fúria onde um jogava seu motivo na cara do outro. Todo esse melodrama existiu de fato. Mas não cabe aqui todas as palavras. Não cabe nesse instante sublime. Não cabe pelo simples fato de que não era necessário. Não havia novidade nos discursos. Bem dizem que a vida imita a arte. Ou seria a arte que imitou a vida?

Sophia. Forjada em terras frias e com um senso de justiça duvidoso estava diante de seu único amor na vida e seu algoz. Aquele que ameaçou a existência dela e ela não conseguiu mata-lo. Muito provavelmente se ela o tivesse matado meses atrás não chegariam a esse momento. Novamente aquele tal de destino fez eles se cruzarem nesse local. Exatamente na mesma hora. Se isso fosse uma obra de ficção essa seria a hora da vida em que tudo faz sentido. Algo que numa peça publicitária é chamada de "ponto de virada". Aquele instante em que a história vira - para o bem ou para o mal - e a peça corre rápida para o fim.

Sérgio. Treinado nas artes da guerra pelo sistema tornou-se um bom policial que resolvia tudo a seu modo, um modo tão duvidoso quanto o senso de justiça de Sophia. Para ele, ela era aquele momento da vida onde tudo faz sentido, ela era o ponto de virada de onde a história viraria para um final - feliz ou não - de forma ágil e sem grandes enrolações ou trechos que desviariam a atenção do interessado na história.

Já que elas foram citadas no começo, que seja dado à elas dados a esse instante. No dia em que Sophia foi até a delegacia junto com as amigas Janaína e Carla relatar o abuso sofrido pela terceira foi quando Sérgio entrou na vida dela. Não foi aquela coisa de bater o olho e se apaixonarem. Esse tipo de coisa só existe em filmes. Foi ali que Nona - Parca responsável por tecer o fio da vida - iniciou seu trabalho no tecido do casal. Posso creditar à Décima - a Parca que da continuidade ao fio da vida - o relacionamento que surgiu em seguida. Uma troca de cartões de visita feita por Sophia e Sérgio fez com que brotasse aquela vontade de conhecer melhor. Foi quando ele tomou a dianteira e a convidou para um café. Depois do café veio um almoço, um cinema, uma páscoa e quando deram por si já dividiam um apartamento na região central da grande metrópole. Agora cabia a última das três Parcas dar números finais à partida. 

E, assim, voltamos ao momento atual. Ao exato instante que começou essa elegia. Ao tratar o relatado como elegia uma parcela já entendeu onde vai parar a trama. A história tem que ser relatada: Sophia tinha planos de vagar por várias cidades país adentro, tudo para voltar à sua cidade natal, e agora estava aqui na grande metrópole. Sérgio, por sua vez, tinha planos de perseguir ela país a dentro e depois voltar a metrópole e, talvez, se aposentar como policial. Os dois planos dariam certo não fosse esse exato momento. Esse instante onde uma fagulha deu inicio ao fogo que derrubou parte das paredes - justamente na proximidade das portas - e que deu para a última Parca o tecido não só da relação de Sophia com Sérgio como para com a vida deles. Coube à ela tomar a linha e tecer o momento atual. Dias depois falaram algo como combustível evaporado de um dos roubados, carros deixados para desmanche naquele depósito, ter entrado em combustão ao tocar uma velha lâmpada incandescente com o vidro quebrado mas que ainda mantinha o filamento metálico inteiro. Foi aí que a terceira Parca tomou as rédeas. Na hora que o teto ia desabar o amor deles ressurgiu. Extintas as chamas acharam Sérgio abraçado à Sophia como se estivesse a protegendo frente ao perigo iminente. Logo as fotos se espalharam por redes sociais e cada um criou sua história. Mas a verdade é que aconteceu o que Sophia devia ter feito. A verdade é que aconteceu o que Sérgio devia ter feito quando teve a chance. Porém, apesar das voltas, a última Parca fez o que eles não tiveram oportunidade ou mesmo coragem de fazer. Coube a tecelã do destino fechar o ciclo. Amarrar as pontas e dar por encerrado esse tecido. E como chama-se essa terceira Parca? Morte.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Álibi e7s2: Galpão

O ano é 1987. Foi o ano que esse terreno de, aproximadamente, oitocentos metros quadrados no canto leste da metrópole foi vendido pelo seu antigo dono, um ex fazendeiro que viu a grande cidade vindo na direção da sua propriedade. Quem comprou era um proeminente empresário que tinha o objetivo de construir o maior mercado do lugar. Dito e feito, em seis meses subiu aos céus um galpão que cobriu praticamente metade do terreno. Mais dois meses de contratações, de arrumações internas e voila. O "Supermercado BR3" abriu suas portas com uma gigantesca inauguração, foi chamado uma dupla sertaneja que despontava nas rádios populares. Lotou. Nas semanas seguintes passou a novidade. O movimento estabilizou.

No ano de 1994, com a mudança de moeda, o empresário começou a ter problemas e acabou por vender sua rede de supermercados para outra rede de supermercados maior. "Os maiores engolem os menores" foi a frase dele ao ir para outras áreas da economia. Mais alguns anos e a grande rede achou aquela loja pouco lucrativa frente à ganância. Venderam o galpão para um jovem mecânico que prosperou por mais de dez anos customizando carros. O sucesso levou o, agora não tão jovem mecânico, para o centro da metrópole. O galpão foi vendido por um décimo do preço que havia sido comprado mais de vinte anos atrás. 

O dono agora tinha uma oficina mecânica de reparos, nada sofisticado. Um ano depois, após uma denúncia anônima, a polícia descobriu que, na verdade, o tal mecânico era na verdade o líder de uma quadrilha que desmontava carros roubados. Depois de inúmeras investigações algumas peças foram devolvidas a seus donos, algumas encaminhadas para leilão, algumas pro carro da esposa do delegado que havia atropelado um mendigo voltando de uma casa de massas onde ela havia bebido taças de vinho a mais, tudo pela frustração na vida de casada. Pelo visto um assassino, ainda que culposo, é capaz de aproximar casais. 

Já no galpão que viu os tempos áureos do bairro via o detrimento do mesmo. O silêncio repousou por ali, só sendo quebrado, vez por outra, uma criança passava por ali correndo atrás de sua pipa. Fora isso o galpão repousava em seu silêncio rumo ao futuro. Até aquele dia. Uma moça entrou, espalhou por entre as pilhas de sucatas de carro fios, explosivos caseiros. Horas mais tarde um rapaz um pouco mais velho que a moça apareceu. Enfim o galpão achou que, depois de muito tempo, veria algum movimento. Palavras rispidas. Foi quando o galpão suspirou vendo a fagulha. O estrondo. Nos dias que se seguiram o terreno voltou à tranquilidade e à paz de quase vinte e tantos anos atrás.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Álibi e6s2: Estalo

O ultimato havia sido dado. Sophia resolveria suas pendências com Sérgio antes de seguir com sua lista. Por isso a invasão do apartamento, por isso a ameaça e por isso a dica de como, onde e quando ir. Claro que não ligava para o fato de, talvez, ele resolvesse vir com toda a tropa policial disponível naquele dia. Por isso havia se planejado e feito pequenas armadilhas que fariam o prédio ruir frente da primeira ameaça. Obviamente tratou de, além de minar o local todo, desenhar uma rota de fuga. 

Era incrível o que se podia aprender na internet, e nem havia se embrenhado pela famosa DeepWeb pra aprender a produzir uma bomba controlável pelo celular. E muito menos precisou traduzir árabe, as instruções estavam em espanhol. Tudo planejado, tudo desenhado na sua mente. Ela sabia que Sérgio tomou a invasão por pessoal e que ele viria sozinho. Repassou tudo mentalmente. Havia deixado o notebook no apartamento de propósito, assim ele poderia guarda-lo pra ela e, assim que as desavenças fossem dissipadas - seja com uma boa conversa ou com um cadáver -, ela passaria lá pegar. 

Tinha tanta confiança no seu plano que teve um pequeno arrepio ao checar os fios da última carga explosiva. Excesso de confiança era o primeiro passo para o fracasso. Algum filosofo havia dito isso, talvez Zun Tsu. Um pequeno pânico tomou conta dela logo dissipado pela falta de falhas na última checagem dos fios, das instalações. Será que esse galpão ruiria? Não sendo na cabeça dela tudo bem. Faltavam menos de cinco minutos para o horário planejado. Ouviu um carro estacionando do lado de fora. Logo a porta de um carro bateu. Antes de se dar conta ouviu passos. 

Sérgio. Estralou o pescoço, os dedos enquanto ele desviava das pilhas de carros roubados. Pena que nenhum desses carros eram inteiros, se não Sophia teria um transporte gratuito por algum tempo. Enfim ele apareceu. Parecia cansado, roupa amarrotada. O cabelo mais branco, mais magro. Tudo isso em menos de seis meses? Sophia sempre passou as camisas dele, sempre o fez comer coisas mais saudáveis. 

O tempo parou enquanto eles se encaravam. Um misto perfeito de saudade e raiva se mesclou nela. Gentil Sérgio deixou que ela falasse primeiro. Não houve história triste de abuso na infância ou algo do gênero. Sophia começou porque quis. E assim pretendia continuar. Quando ele começou a falar ela o ouviu pacientemente. Quando ele terminou de falar o impasse surgiu. Foi aí que um estalo surgiu.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Álibi e5s2: Merda

Agora ela tinha passado de todos os limites aceitáveis. Aquela vadia ia pagar caro por ter invadido meu apartamento, bagunçado tudo e ainda por cima querer marcar um encontro. Sophia não sabia o que tinha plantado quando entrou aqui. E o notebook? Merda. Por que diabos ela deixou a porra do notebook? Pior: Por que eu fiquei entretido com as informações que tinha nele e esqueci da minha pizza? Se bem que o ketchup picante resolvia bem e pizza fria não era de todo ruim.

O molho respingou no canto do teclado enquanto eu buscava qualquer coisa útil pra levar aquela desgraçada pra justiça. Ou pra vala. Tanto faz. A porra é que ela me fez ir até lá embaixo e falar com aquele velhote que cuida da portaria essa hora da madrugada. Ele não era mal funcionário, longe disso, mas ele era tão surdo quanto a porta. Por isso ele não ouviu a hora que perguntei das câmeras de segurança do elevador. Não podia culpar a pessoa errada. O palavrão foi mais forte que eu quando descobri que: Primeiro: essa bosta de prédio só tem câmeras dentro do elevador. Segundo: A Sophia usou as escadas, ela sempre teve uma certa fobia de elevador. Tanta coisa pra ter medo e vai ter medo logo de uma... okay, era uma caixa fechada, sem janelas, que se movia e o sistema de pedir socorro nunca funcionava direito.

Enquanto fuçava descobri que ela não havia começado a fazer o que fez aqui. Aliás, sempre quis ver o que tinha nesse notebook, desde quando a gente resolveu morar juntos, meses atrás. Nada demais. Muitos artigos de leis - que eram justificados por ela fazer faculdade de direito. Muitas fotos do passado no que parece ser o sul - que é de onde ela diz ter vindo. Muitas buscas sobre hotéis, pousadas, hosteis em vários lugares do país - perfeitamente aceitável de pensar que ela estava em fuga e que ela fez das suas em outras cidades pequenas. E em um arquivo com meu nome, uma pequena mensagem.

"Encontrou o que procurava, Sérgio? Cansei de fugir. Venha me encontrar na rua Fernando Pessoa, 3340 depois de amanhã, no fim da noite. Vamos resolver todas as nossas pendências. Não preciso pedir que venha sozinho, porque sei que virá. Não precisa trazer o notebook, depois eu passo aí pegar. Com amor, Soph."

Confesso. Minha vontade foi estourar o notebook da Sophia na parede. Ela era petulante. Petulante ao ponto de que eu me sentia desafiado. No arquivo tinha a data do encontro. Provavelmente cega pela vingança ela não tinha notado que só ia ter a chance de vir aqui no dia seguinte. Ou será que ela me queria lá depois de amanhã? Tanto faz. Amanhã era meu dia de folga, então não custava nada passar lá e, se não tivesse ninguém passaria no dia seguinte dizendo que tinha recebido uma pista de algo. Se não fosse verdade ou o endereço estivesse errado ganharia meio dia de folga. Comi mais dois pedaços de pizza gelada pensando em como resolver e preparando os pentes de munição. Três pentes de vinte e um tiros deviam dar pro que planejava. Ou presa, ou no saco preto. Ela só tinha essas opções.

Tentei dormir um pouco. Mas o máximo que consegui foram pequenos cochilos intercalados por pesadelos que me despertavam e me faziam acordar com a arma em punho. Numa dessas acordadas cheguei a dar um tiro na janela que dava para a rua. Por sorte - ou cagada mesmo - ninguém estava no caminho. O vizinho do lado interfonou perguntando do tiro, falei que estava jogando com o volume alto, pedi desculpas e passei a dormir com a arma debaixo do travesseiro, não sobre o peito. Depois de duas dúzias de sonos com meia hora dormi o resto do dia. Ao fim deles chequei todo o equipamento e liquidei a pizza. Bebi um gole de vodka pura. Perfeito.

Segui de taxi para o endereço indicado, pois se qualquer uma das minhas opções acontecesse eu precisaria deixar meu carro no lugar e seguir com uma viatura. E de acordo com o site de mapas e com o conhecimento do Peçanha, o bairro ali era barra pesada. Por isso evitei ir com o meu carro. Um taxi me levava lá e pronto. Claro que iria sair uma bela facada. Por isso, ao invés do tradicional taxi, preferi aquele aplicativo que todos diziam ser mais em conta. No fim da corrida pareceu mais em conta mesmo. O lugar parecia aqueles depósitos velhos de filme americano onde os ladrões formulavam um plano de assalto ao banco.

Assim que passei pela pilha de carros desmontados reduzidos à carcaças, desviando de peças soltas no chão que, se eu trombasse, podiam fazer algum barulho. Mas o calçado fazia um pouco de barulho nesse chão de concreto armado. Merda. Devia ter ou vindo com aquele tênis de corrida que tinha pago os olhos da cara, ou entrado de meias. Depois de chegar no grande salão do depósito pude ver Sophia parada. Desarmada. Só com um pequeno controle parecido com o de alarme de carro nas mãos. E eu com a pistola na parte de trás da calça. Ela não parecia querer fugir. Por isso deixei que ela falasse primeiro. Não veio aqueles clichês de história triste, de abuso infantil que justificasse o que ela fez. Ela só começou a fazer o que fazia porque deu vontade. Só isso. Depois foi minha vez de falar. Porém minha fala foi interrompida por um estalo. Um barulho forte vindo do lugar onde eu havia acabado de passar veio acompanhado do cheiro de pólvora. Merda.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Madrugada

2:48.

O frescor da madrugada atingiu ele parado do outro lado da rua. Ouviu um ranger de metal antigo e, por um instante, pensou que fosse a placa pendurada naquela tabacaria no dois prédios a esquerda. Não, a placa estava imóvel. O que se abriu foi o portão. Aquele portão rangendo parecia o da velha casa em que ele e ela viveram tanto tempo e que hoje era bem cuidada por uma família com dois filhos pequenos que tinha vindo do interior buscando melhores condições de educação para as crianças. O olhar dele estava baixo quando ela se aproximou, quase como se mantivesse um respeito frente à figura dela.

Ele estava envolto em seus pensamentos. Tinha planejado ir embora quando a figura se aproximou mais. Quis sair correndo. Sumir. Fazer qualquer coisa. Mas algo prendeu seus pés ao chão. Correntes mais fortes do aço mais forte que jamais foi forjado mantiveram ele ali. Imóvel. Um vento frio ousou passar entre eles. A rua que antes tinha algum barulho ao longe tinha perdido todo o ruído que pudesse atrapalhar a comunicação dos dois. Foi quando a mão dela se estendeu no ar e ele se deu conta de que era ela mesma. O pé descalço no chão frio e sujo foi a primeira coisa que chamou a atenção dele.

Ele tomou a pequena - e quente - mão dela na dele sendo invadido por um calor que a muito não sentia. "Devia colocar um calçado nesse pé". Ele ignorou a frase dita por ela. Eles não precisavam dos clássicos cumprimentos, as clássicas frases clichês que começa todo dialogo. Essa conexão que trouxe ele, novamente, até a presença dela era a sintonia de que tanto ele, quanto ela, estavam em um momento cinza da vida. A pianista havia sumido da vida dele. A faculdade. Os amigos. O emprego. A comida. Tudo havia perdido a graça. Era como se faltasse algo. Algo que o toque da mão dela o fez arrepiar.

Entre. Café. As duas únicas palavras que havia entendido ditas por ela. Sorriram seguindo pela pequena calçada em que alguns tufos de grama ousavam crescer entre as pedras. Estavam em um silêncio tão gritado que não havia necessidade de palavras. Vibrações sonoras. Diziam tudo que havia para ser dito ali, caminhando ao relento. Entraram na casa. O som estava ligado baixo. A casa em meia luz e o cheiro de café e tabaco inundando o ambiente. Ele fez uma caretinha habitual frente aos vícios dela. Ela sorriu. Foram até a cozinha onde o cheiro de café era quase insuportável. Mas, por estar na presença dela, ele suportava.

Como conhecendo ele mais do que ele mesmo, ela tirou uma lata de achocolatado do armário. Colocou sobre a mesa dizendo que se sentasse. Logo apareceu mais uma xícara, leite, colher e biscoito maria. Aqueles minutos em silêncio só foram quebrados por um cachorro que latiu por um inimigo invisível. Eles, que até então mantinham um cenho formal - apesar de nunca terem sido formais um com o outro - sorriram. Ele começou falando dele. Da vida. Da faculdade. Dos amigos. Do emprego. Da comida. E de como tudo isso havia perdido a graça. De como tudo tinha virado uma paleta de cores monocromática. Depois de vários pares de minutos ele deu por encerrado sua ladainha.

Ela bebericou um gole de café. Até agora ela não havia falado nada. Apenas ouvido. Ele sorriu bebendo um gole do achocolatado a vendo inflar o peito e soltar o ar em seguida. Ela esboçou um sorriso e começou a falar. Da vida. Dos amigos. Do emprego. Da comida. E de como tudo havia perdido a graça. Falou da escala de cinzas que havia tomado sua vida. Falou de seus casos depois que eles se separaram. De como odiava essa vinhança. Do quanto sentia falta da vista que tinha no apartamento e que o tapete de borboleta havia sido destruído por um gato de uma vizinha velha que morava do outro lado da rua. 

Nesse instante, depois de longos pares de minutos falando ela enfim se calou e o som da voz dela ecoou por toda a cozinha por não mais que meio segundo. Em seguida o silêncio imperou. Dois pares de minutos se passaram. O líquido em ambas as xícaras havia esfriado. Foi quando as mãos se tocaram novamente. Com isso os corpos começaram a se atrair como se puxados por uma força maior do que eles. Um magnetismo. Algo maior do que eles. Maior que a rua. Que o bairro. Que a cidade. Que o continente. Que o planeta. Que todo o universo junto. Quando os olhos se fecharam e a ponta dos narizes frios se tocaram veio um sorriso de ambos. Os lábios se tocariam, novamente o beijo deles seria capa de inúmeras revistas, a imagem ganharia inúmeros prêmios por plasticidade da imagem, por verdade no sentimento que demonstravam. O primeiro raio da manhã foi a última coisa que entrecortou-se entre os lábios deles antes do toque.

9:15.

O despertador tocou. Ele abriu os olhos. Tudo não havia passado de um sonho. Outro dia de merda começava.

domingo, 15 de maio de 2016

Para-Quedas

Para ele o universo tinha algo pessoal contra ele. Não podia ser. Tudo bem que ele nunca se esforçou para procurar alguém e os "alguens" sempre "caiam de para-quedas" na sua frente. Mas, estranhamente, todos que apareciam do nada na sua vida subiam no avião para saltar novamente - e, dificilmente, caiam na frente dele novamente. Não que não soubesse se virar, correr atrás do seu, fazer todos os esquemas, cálculos, planejamentos, que precisava fazer para sobreviver.

Falando sobre viver ele não se sentia vivo fazia um bom tempo. A laje, as estrelas e a Lua, suas únicas companheiras. Claro, não podia se esquecer da motocicleta preta estacionada na garagem. Parceira de tantas viagens, de tantos rolés... de súbito pensou que o frio estava chegando. Desceu para a cozinha. Não tinha a menor vontade de fazer chimarrão ou beber uma vodka. Do armário sacou uma caixinha de chá de erva doce que devia residir ali desde o inverno passado. 

Ferveu a água imaginando que ela estaria fervendo água pro café com aquele maldito cigarro entre os dedos. Ele sempre odiou cigarro, o simples cheiro desde criança lhe fazia ter ânsia de vômito. Mas com ela não sentia o cheiro. Não o cheiro completo. Sentia um cheiro fraco, como se quem fizesse o mau hábito estivesse distante uns dez, doze metros. Será que isso era culpa do sentimento? Quem sabe. Hoje ele havia voltado a sentir nojo extremo de cigarros e derivados. Depois que "separaram" nunca mais teve noticias dela. E não era culpa de ninguém. Subiram no mesmo avião, mas depois do salto cada um pousou milhas distantes um do outro.

Enquanto achava uma xícara no armário seu pensamento se perdeu na música que tocava em uma rádio dessas que não tocam a música da moda ou o último sucesso do sei-lá-quem. Era uma versão de Für Elise tocada com maestria por um pianista tcheco gravado dezenas de anos atrás. Foi aí que seu pensamento foi até a pianista. Merda. Essa sim entrou, literalmente, em um avião e saltou distante. O cabo da chaleira esquentou junto com a água. Tomou um pano de prato e jogou a água fervente na xícara onde o saquinho de chá aguardava. Essa era uma que deu as caras no começo do ano e depois sumiu. Provavelmente os ventos levaram o para-quedas dela para longe.

O liquido amarelou-se. Não colocaria açúcar. Nunca colocou. Mesmo em chá mate sempre preferiu beber in natura. Olhou o moedor de pimenta no balcão. Pensou um instante e moeu meia dúzia de voltas de pimenta dentro do chá. Bebericou um gole. E não é que sua invenção ficou boa? Um dia podia patentear isso e comprar um GPS, daria para as pessoas que gostava assim que elas subissem no avião. Quando elas chegassem ao chão ele saberia como procura-las. Terminou de beber sua mais recente invenção e recebeu um telefonema. Teria de ir à metrópole resolver alguns assuntos rápidos.

Pegou a jaqueta de couro. O capacete. A motocicleta. Trancou a casa toda e subiu a serra. Resolveu tudo que tinha para resolver em pouco mais de uma hora. Já que tinha vindo até aqui por que não acionar o GPS e ir procurar por ela? Não. Ainda não. Passou por sua velha casa. Os novos donos ou inquilinos estavam cuidando bem do jardim e da pequena horta que ele e ela haviam "desenvolvido" no fundo da varanda. A julgar pelas janelas bregas os novos donos deviam ter vindo do interior. Isso explicaria o fato de estarem cuidando das plantas. Que bom. Pretendia voltar quando resolveu ir até aquela padaria que ficava em frente do prédio dela. Ao chegar na padaria lembrou que ela não morava mais ali. Ainda lembrava de onde ela tinha ido morar. No caminho passou por alguns depósitos. Um deles estava em chamas que os bombeiros lutavam bravamente para combate-las. 

Chegou no endereço. Olhou a casa "viva". Janelas acesas. Música. Na verdade era apenas uma janela acesa - a da sala - e a música era baixa - o suficiente para ser ouvida mas não reconhecida - o silêncio na redondeza dizia para ele algo que ele só se deu conta ao olhar para o relógio do celular. Eram passados de duas da manhã. O cheiro de café misturado ao de tabaco veio da casa. Dois cheiros que ele nunca gostou. Dois cheiros que ele reconhecia como sendo dela. Será que ela estava tão acinzentada quanto ele? Será que aquela caixa de lápis de cor já havia se acabado? Desligou a motocicleta ficando do outro lado da rua. Na mochila que levava meia dúzia de pães. Provavelmente ela ainda teria achocolatado. Mas... a dúvida lhe ocorreu. Lhe percorreu por completo. Lhe consumiu de tal forma que ele ficou inteiramente inerte olhando para o muro nem tão alto que escondesse a casa e nem tão baixo que pudesse assanhar bandidos locais. Olhou para o céu como se buscasse uma resposta, uma luz divina, algo superior que lhe guiasse nessa hora de dúvida. Algumas estrelas apareceram entre as nuvens. Logo a Lua fez sua aparição e, no tempo de não mais que cinco minutos, o céu inteiro estava estrelado. Qualquer um que pasasse perto dele olhando para cima o teria por doido ou algo do tipo. Ele, citando Bilac, responderia "amai para entende-las! Pois só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e entendder estrelas.". Permaneceu inerte por mais tempo. Ficou sem ação. Será que ela sairia? As horas passavam-se sem que ele tivesse qualquer atitude. Ele ficou a espera de algo divino que lhe desse a resposta. Isso se essa coisa de divino, realmente, existia.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Álibi e4s2: Pizzaria

Decididamente existem dias bons onde tudo que você planeja dá certo. Todas as esquinas que você passa o semáforo está aberto. A vaga dos sonhos no estacionamento está vazia. Você vai pegar café e ele foi feito na última meia hora. O computador ajuda. Na volta pra casa você encontra aquela comida que você julgou ter acabado na geladeira atrás de algumas latas de cerveja que você também julgou não existirem.

Não, esse dia não foi hoje. Aquele planejamento feito na hora do banho foi um desastre. Alguma obra próxima fazia um barulho que era ouvido com mais intensidade justamente no lugar onde nos encontramos com nosso eu mais profundo: o banheiro. 

Todos os semáforos estavam fechados. E os sempre tinha algum babaca trancando o cruzamento. Fora os vendedores de bala. Vendedores de caneta. Vendedores de adesivo. Malabaristas. Pedintes. Crianças que lavam o vidro usam aquele rodinho que risca o vidro. Coloquei o distintivo no console e enfiei a mão na buzina várias vezes. Pensei em pegar a pistola, ameaçar alguns... mas nos dias de hoje qualquer ameaça já vai pras redes sociais e dá merda. Um soldado novato lá se fodeu lindamente ao dar dois tiros pro alto em uma festa de igreja semana passada.

Por causa desse atraso todo no caminho, as vagas do estacionamento estavam todas cheias. Só sobraram as vagas descobertas e do outro lado do planeta. Decididamente tem dias que deus - caso ele realmente exista - não vai com a minha cara. Pra foder com tudo ainda foi o dia mais quente do ano. Depois eu vi que tinha sido o dia mais quente dos últimos dez anos. Puta merda.

E o café? Desisti quando vi o aspecto dele na caneca do Soares, meu superior direto. Parecia água com terra. Molho shoyo. Disenteria. Rio Tietê poluído. Petróleo. Qualquer outra merda dessas escuras. Menos café. O cheiro lembrava aquela meia minha que ficou debaixo da cama e só fui me ligar da existência quando ela começou a feder. E fedia pra caralho.

O computador, pra variar, não parava de travar. Hoje eu tinha que ficar algumas horas na sede do batalhão digitando relatórios. Como com essa bosta de computador? O teclado parou de funcionar e aquele boyzinho filho do secretário de segurança que fingia trabalhar com T.I. trouxe um teclado branco que não tinha nem cedilha. Puta que pariu. O pior é que ninguém gostava do moleque. Ele sentava no canto dele com seu café da Starbucks que ele comprou com o cartão corporativo do pai e que, no fim, saía do nosso bolso. E pra completar a foda, sem cuspe e com caco de vidro, a merda do ar condicionado resolve parar de funcionar. Resultado: em vinte minutos todos estávamos putos, suados e fedidos. Decidi sair pra ronda. Ao menos isso não me trouxe aporrinhação. Só sacudir maconheiro em porta de escola.

Vinte e cinco horas depois. Com o stress lá na casa do caralho pensei em parar em algum bar. Mas e com que dinheiro? Cada dose de cachaça era dez, doze contos. É pra foder geral. Parei num mercadinho perto de casa e comprei aquela cachaça vagabunda que vem em garrafa plástica. Fígado? Ele que se vire. Na geladeira nada interessante - algumas saladas, uma pizza parcialmente podre, uma panela com cozido que fiz semana passada e no congelador, além de gelo, uns hambúrgueres baratos - o que me obrigou a pedir uma pizza. Que, no fim, não veio porque o motoboy foi atropelado. Resolvi ir buscar pessoalmente, ficava só a dois quarteirões daqui mesmo.

No caminho uma prostituta passava indo pra sua esquina padrão. Acho que o nome dela era Sheila e não era ela. Era a porra dum traveco. Na pizzaria ainda tive de esperar que fizessem minha pizza. Pela primeira vez hoje alguém fez algo bom e me deu um puta desconto na pizza. Além de quatro latas de cerveja. A corote iria sobreviver esse pós-plantão. A sorte começou a virar? Saindo da pizzaria a rua deserta. Ninguém pra me irritar. Ninguém pra me fazer querer dar uns tiros. O porteiro do prédio num bom-humor raro. Acho que o time dele ganhou o jogo. O que deve querer dizer que o meu time também tinha ganho, afinal, torcíamos pra mesma merda de time. 

No elevador a gostosa do andar de baixo entrou acompanhada de duas amigas e umas sacolas de comida congelada. Se eu não tivesse discutido com o pai dela talvez ela me convidasse pra ir com as amigas assistir filme e depois comer. Comer não apenas comida. Puta que pariu. Se existisse o ctrl + z da vida eu resolvia isso. Claro que o cheiro da minha pizza de calabresa empesteou o ambiente. Eu não convidaria elas. Mesmo que representasse perder uma foda grátis. Elas desceram rindo. Certamente falaram algo no WhatsApp. A porta do elevador fechou. O próximo andar era o meu.

Ao chegar no meu andar as luzes estavam acesas. Alguém devia ter passado por aqui. Os passos pelo corredor e o elevador saindo do meu andar em seguida. No minimo as cocotinhas tinham esquecido a bebida no carro. Podia oferecer pra elas minha corote. Ri mentalmente disso. Destranquei a porta sentindo o cheiro da pizza e imaginando ela descendo pela minha garganta. Qual filme assistiria hoje? Qualquer um. Ao dar o primeiro passo dentro do apartamento pisei em cacos. Liguei a luz. O apartamento estava revirado. Deixei a pizza e a cerveja no aparador perto da porta. Peguei a pistola. Não havia ninguém. Na tela da TV desligada, escrita com batom vermelho só uma frase:

"Você é o próximo, Sérgio. Cuide-se."

Puta que pariu, Sophia. Primeiro aquela ameaça de merda no e-mail, agora isso. Ficou pessoal.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Álibi e3s2: Carretera

Esse ano estava sendo de muitas primeiras vezes para Sophia. A primeira vez que agiria em mais de uma cidade. A primeira vez que tinha uma lista pronta. A primeira vez que já tinha planos prontos desde o inicio. A primeira vez que teria de interromper os planos por um motivo alheio à sua vontade. A primeira vez que se irritou com alguém que não era alvo. Seria a primeira vez que ela usaria o artigo dois do seu código de conduta. O primeiro era eliminar todos que o Estado não prendia. O segundo era eliminar todos que atentassem com a vida dela. E esse era o momento de resolver essa pendência de uma vez por todas.

Saindo de Uberlândia rumou para Belo Horizonte. Roubou dois turistas distraídos que deviam estar falando em espanhol ou algum dialeto guarani. A julgar pela aparência eles eram paraguaios. Logo, contrabandistas em potencial. Logo mereceram ter suas carteiras roubadas. Entrou no ônibus digitando uma resposta para Sérgio, agora eram horas de viagem onde ela teria de aturar uma jovem que não saía do celular. Aquela luz do dispositivo não deixava Sophia dormir nem planejar nada. Alguns minutos de observação fixa ela chegou a conclusão que a jovem iria encontrar o namorado que havia conhecido em alguma rede social. Se elas tivessem se conhecido horas antes do embarque Sophia buscaria a ficha completa do rapaz e diria à ela se valeria a pena ir atrás dele ou não.

Talvez no futuro Sophia podia viver disso. Buscando informações sobre as pessoas e dizendo se elas eram mesmo quem diziam ser. Em outros países muita gente ganhava rios de dinheiro fazendo esse tipo de serviço. E de quebra poderia financiar assim suas outras empreitadas. Era algo a se considerar. Finalmente a jovem notou que o brilho estava exagerado e diminuiu a intensidade de luz do dispositivo que usava. Sophia sorriu de canto como se agradecesse. Agora era cochilar e ver se traçava um plano para o quê fazer com Sérgio. Ele era sagáz. Ela sempre esteve dois passos a frente dele, porém na última ação do ano que passou ele a alcançou. Coube a ela agir como agiu e fugir. Claro que ele tinha atentado para com a vida dela e, teoricamente, rompido a segunda regra do seu código de conduta. Era ela agir agora e resolver tudo isso. Agora era dormir pra chegar descansada à grande São Paulo.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Piano Bar

Ele se sentia estranho. Podia ser culpa do calor. Da aparente tranquilidade no trabalho, nas aulas, no trajeto de casa até seu trabalho. Toda essa tranquilidade o deixava com aquela ponta de preocupação. Como se soubesse que algo fosse acontecer logo. E se acontecesse? Como seria? Como reagiria? Não que essas dúvidas lhe tirassem o sono, mas, lhe deixavam preocupado com o amanhã. Sempre o amanhã, que não aconteceu nada, preocupa mais do que o hoje ou até mesmo o ontem (onde, teoricamente, já aconteceu e, logo, não há nada que possa ser feito), tudo por causa do amanhã.

O céu azul continuava a irritar suavemente seu humor cinza. Não que o humor cinza fosse ruim, longe disso. Aquele "ser rabugento" era tão dele que, quem já o conhecia a mais tempo, nem questionava. Até mesmo quando ela foi embora sem deixar nem um bilhete ou algo do gênero ele sentiu o baque. Não havia baque. Não havia mágoa nem nada que equivalesse. Sabia que a vida era assim, certamente ela seguia em frente assim como ele. Ainda gostava de ir até a praia e ficar meditando frente à imensidão do mar. Gostava de deitar na laje e ficar batendo papo com as estrelas.

Nas férias descansou, colocou a leitura em dia, viu algumas séries que haviam lhe indicado, viu filmes e aquele velho projeto de livro, enfim, foi finalizado. Restava publicar, mas isso resolveria no decorrer do ano, já haviam sido vários anos até escrever, agora um tempo a mais para publicar não seria nada demais. Aprendeu a ter paciência. Ou quase isso. Pois momentos de fúria o invadiam vez por outra e ele deixava que eles saíssem. Ele ponderava comprar um saco de areia, daqueles de academia, pra esses momentos, assim teria algo para socar.

Dias após a virada do ano uma mensagem no celular lhe chamou a atenção. Não era ela. Não eram parentes. Não eram amigos. Era alguém que havia entrado na vida dele para, logo em seguida, sumir e o deixar na mesma condição de antes. A pianista dizia estar com saudade dele. Queria saber se ele ainda ia ao barzinho. Queria conversar, ainda que de forma breve. Conversavam a conta-gotas. Estando no estrangeiro seus horários eram sempre conflitantes. Ele chegava do trabalho e ela estava se preparando para dormir. Ela acordava e ele ainda estava em alta madrugada. Logo conversavam muito pouco. Porém cada conversa. Cada mensagem era como se fosse uma história longa e repleta de detalhes.

Ao fim de algumas semanas de conversas curtas ela acabou por confessar que "muito em breve voltaria para o mundo novo". Que a experiência de tocar em algumas casas pequenas de espetáculo na Europa não haviam sidos tão ruins e que, logo que resolvesse algumas pendências ela voltaria. A pianista tinha planos. Queria dar aulas. Queria voltar a tocar na noite. Queria passar um tempo com ele, se possível fosse. Ele, na sua estranheza diária, não recusou nem aceitou. Sentiu um pequeno traço de calor brotar em seu peito. Achou estranho. Mas... tanta coisa era estranha. Essa deveria ser mais uma. Deveria sim. O final das férias representou não conversar mais com a pianista diariamente.

O fim das férias representava o retorno à rotina. Rotina que ele tanto abominava e tanto sentia falta. Excesso de folga não faz bem. Excesso de regras também. Por isso nesse ano ele havia se proposto a não levar tudo tão a sério. Claro que ainda seria profissional. Claro que ainda teria os momentos de total ócio. Seria um desafio pra ele se regrar sobre o que valia e o que não valia levar dentro de si. Por isso se afastou um pouco do grupo de amigos que ia frequentemente ao bar. Não sentia mais esse desejo. Não sentia mais vontade de conviver com pessoas. Por um instante, nesses momentos entre o trabalho e a faculdade ele se sentiu como Harry Haller sendo destroçado por suas inúmeras personalidades. Praticamente um Lobo da Estepe misantropo. 

Em um instante de reflexão. Um lapso de pensamentos que se juntavam tais como peças de um quebra-cabeças. Formou uma teoria. Harry. Não. Não queria pensar nisso. Balançou a cabeça lateralmente tentando não pensar nisso. Mudou o foco. O céu seguia azul. Isso. Hora de se irritar com o céu azul. Mas Hermínia era livre e... merda. Ele não soube dizer o rumo que tomaria isso. Não quis pensar. ... "salvou" o Harry de sua aniquilação. Balançou a cabeça novamente. Foco no céu. Isso. Respira fundo e se irrita com o céu estar azul quando ele o queria cinza. Algumas horas se passaram e ele falhou miseravelmente no seu ódio.