terça-feira, 26 de julho de 2016

Álibi e8s2: Parcas

E assim chegamos a esse ápice. A glória dos dois lados. Sem uma explicação plausível de como eles chegaram naquele instante, daquela forma, naquela igualdade de condições dignas de colocar a balança em um equilíbrio tão perfeito que nem mesmo o signo de libra - comum aos dois - era tão exata em sua precisão equilibrística. Tudo por um descuido. Um instante de vacilação bastou para esse momento. Para os que acreditam em destino esse era o destino deles. 

Não cabe nesse momento a explicação de como ou porque eles haviam chegado nesse local, nesse instante, rigorosamente ao mesmo tempo. A "culpabilidade" do ocorrido poderia ser atribuída às Parcas, mitológicas criaturas que teciam o destino. Curioso em se pensar nisso pois Einstein imaginou o espaço-tempo ("local" onde os eventos ocorrem) como um tecido. Mais irônico disso seria ocorrer numa facção onde bolivianos costuravam a próxima tendência da moda a esforço escravocrata. Não era o caso. Se a situação fosse obra de um escritor extremamente suscetível à clichês ele declinaria a esse recurso. Mas, como já foi mencionado, não era o caso. 

Aliás, cabe dizer que não era uma obra escrita. Eram apenas fatos verdadeiros sobre o ocorrido que eram escritos durante o momento em que eles aconteciam. Os jornais do dia seguinte. Os portais de notícia. As redes sociais. Os programas de televisão e de rádio podiam contar a história da sua forma. Ou incriminando Sophia e absolvendo Sérgio ou condenando Sérgio e absolvendo Sophia. Condenando ou absolvendo os dois. Porém a verdade era o descrito aqui. Ao vivo. Como se houvesse uma câmera no ambiente que gravasse todas as cenas e que, agora, eram transcritas.

Verdade seja dita: Aquelas cenas de seara mexicana, onde um aponta a arma para o outro nunca fizeram o menor sentido se ambos estavam um afim de matar o outro. Quem atirasse primeiro ganhava o duelo. Fim. Claro que a dramaticidade da cena era aquele diálogo que não apareceu durante o filme inteiro e que, agora, explicava toda a história. Toda a rixa entre as personagens. Em cinco ou seis minutos de diálogo regado a flashbacks e a fúria onde um jogava seu motivo na cara do outro. Todo esse melodrama existiu de fato. Mas não cabe aqui todas as palavras. Não cabe nesse instante sublime. Não cabe pelo simples fato de que não era necessário. Não havia novidade nos discursos. Bem dizem que a vida imita a arte. Ou seria a arte que imitou a vida?

Sophia. Forjada em terras frias e com um senso de justiça duvidoso estava diante de seu único amor na vida e seu algoz. Aquele que ameaçou a existência dela e ela não conseguiu mata-lo. Muito provavelmente se ela o tivesse matado meses atrás não chegariam a esse momento. Novamente aquele tal de destino fez eles se cruzarem nesse local. Exatamente na mesma hora. Se isso fosse uma obra de ficção essa seria a hora da vida em que tudo faz sentido. Algo que numa peça publicitária é chamada de "ponto de virada". Aquele instante em que a história vira - para o bem ou para o mal - e a peça corre rápida para o fim.

Sérgio. Treinado nas artes da guerra pelo sistema tornou-se um bom policial que resolvia tudo a seu modo, um modo tão duvidoso quanto o senso de justiça de Sophia. Para ele, ela era aquele momento da vida onde tudo faz sentido, ela era o ponto de virada de onde a história viraria para um final - feliz ou não - de forma ágil e sem grandes enrolações ou trechos que desviariam a atenção do interessado na história.

Já que elas foram citadas no começo, que seja dado à elas dados a esse instante. No dia em que Sophia foi até a delegacia junto com as amigas Janaína e Carla relatar o abuso sofrido pela terceira foi quando Sérgio entrou na vida dela. Não foi aquela coisa de bater o olho e se apaixonarem. Esse tipo de coisa só existe em filmes. Foi ali que Nona - Parca responsável por tecer o fio da vida - iniciou seu trabalho no tecido do casal. Posso creditar à Décima - a Parca que da continuidade ao fio da vida - o relacionamento que surgiu em seguida. Uma troca de cartões de visita feita por Sophia e Sérgio fez com que brotasse aquela vontade de conhecer melhor. Foi quando ele tomou a dianteira e a convidou para um café. Depois do café veio um almoço, um cinema, uma páscoa e quando deram por si já dividiam um apartamento na região central da grande metrópole. Agora cabia a última das três Parcas dar números finais à partida. 

E, assim, voltamos ao momento atual. Ao exato instante que começou essa elegia. Ao tratar o relatado como elegia uma parcela já entendeu onde vai parar a trama. A história tem que ser relatada: Sophia tinha planos de vagar por várias cidades país adentro, tudo para voltar à sua cidade natal, e agora estava aqui na grande metrópole. Sérgio, por sua vez, tinha planos de perseguir ela país a dentro e depois voltar a metrópole e, talvez, se aposentar como policial. Os dois planos dariam certo não fosse esse exato momento. Esse instante onde uma fagulha deu inicio ao fogo que derrubou parte das paredes - justamente na proximidade das portas - e que deu para a última Parca o tecido não só da relação de Sophia com Sérgio como para com a vida deles. Coube à ela tomar a linha e tecer o momento atual. Dias depois falaram algo como combustível evaporado de um dos roubados, carros deixados para desmanche naquele depósito, ter entrado em combustão ao tocar uma velha lâmpada incandescente com o vidro quebrado mas que ainda mantinha o filamento metálico inteiro. Foi aí que a terceira Parca tomou as rédeas. Na hora que o teto ia desabar o amor deles ressurgiu. Extintas as chamas acharam Sérgio abraçado à Sophia como se estivesse a protegendo frente ao perigo iminente. Logo as fotos se espalharam por redes sociais e cada um criou sua história. Mas a verdade é que aconteceu o que Sophia devia ter feito. A verdade é que aconteceu o que Sérgio devia ter feito quando teve a chance. Porém, apesar das voltas, a última Parca fez o que eles não tiveram oportunidade ou mesmo coragem de fazer. Coube a tecelã do destino fechar o ciclo. Amarrar as pontas e dar por encerrado esse tecido. E como chama-se essa terceira Parca? Morte.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Álibi e7s2: Galpão

O ano é 1987. Foi o ano que esse terreno de, aproximadamente, oitocentos metros quadrados no canto leste da metrópole foi vendido pelo seu antigo dono, um ex fazendeiro que viu a grande cidade vindo na direção da sua propriedade. Quem comprou era um proeminente empresário que tinha o objetivo de construir o maior mercado do lugar. Dito e feito, em seis meses subiu aos céus um galpão que cobriu praticamente metade do terreno. Mais dois meses de contratações, de arrumações internas e voila. O "Supermercado BR3" abriu suas portas com uma gigantesca inauguração, foi chamado uma dupla sertaneja que despontava nas rádios populares. Lotou. Nas semanas seguintes passou a novidade. O movimento estabilizou.

No ano de 1994, com a mudança de moeda, o empresário começou a ter problemas e acabou por vender sua rede de supermercados para outra rede de supermercados maior. "Os maiores engolem os menores" foi a frase dele ao ir para outras áreas da economia. Mais alguns anos e a grande rede achou aquela loja pouco lucrativa frente à ganância. Venderam o galpão para um jovem mecânico que prosperou por mais de dez anos customizando carros. O sucesso levou o, agora não tão jovem mecânico, para o centro da metrópole. O galpão foi vendido por um décimo do preço que havia sido comprado mais de vinte anos atrás. 

O dono agora tinha uma oficina mecânica de reparos, nada sofisticado. Um ano depois, após uma denúncia anônima, a polícia descobriu que, na verdade, o tal mecânico era na verdade o líder de uma quadrilha que desmontava carros roubados. Depois de inúmeras investigações algumas peças foram devolvidas a seus donos, algumas encaminhadas para leilão, algumas pro carro da esposa do delegado que havia atropelado um mendigo voltando de uma casa de massas onde ela havia bebido taças de vinho a mais, tudo pela frustração na vida de casada. Pelo visto um assassino, ainda que culposo, é capaz de aproximar casais. 

Já no galpão que viu os tempos áureos do bairro via o detrimento do mesmo. O silêncio repousou por ali, só sendo quebrado, vez por outra, uma criança passava por ali correndo atrás de sua pipa. Fora isso o galpão repousava em seu silêncio rumo ao futuro. Até aquele dia. Uma moça entrou, espalhou por entre as pilhas de sucatas de carro fios, explosivos caseiros. Horas mais tarde um rapaz um pouco mais velho que a moça apareceu. Enfim o galpão achou que, depois de muito tempo, veria algum movimento. Palavras rispidas. Foi quando o galpão suspirou vendo a fagulha. O estrondo. Nos dias que se seguiram o terreno voltou à tranquilidade e à paz de quase vinte e tantos anos atrás.