quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Aeon

Ele se sentia sufocado com tudo que tinha, com tudo que tinha de fazer. A grande verdade é que, por mais que estivesse tranquilo com relação em não ter mais Ela e nem a pianista ele sentia um vazio no peito. Claro. Sempre tinham os classificados do jornal que poderiam suprir sua necessidade física. Os bares locais para suprir um bom papo... mas ninguém para passar a noite, acordar no dia seguinte ouvindo alguém cantarolando Franz Ferdinand naquele banho matinal. Cada amanhecer era silencioso - salvo pelo vizinho com aquele gosto musical extremamente duvidoso que vez por outra o saudava matinalmente com músicas de corno - e sozinho.

Ele pensava que tudo deveria ter um propósito na vida. Não, ele não era daquele tipo que acredita que um deus tece o destino dele. Pelo contrário, ele determinava tudo na vida dele. Todas as escolhas foi ele que, forçado pelas situações, acabou por ter essa ou aquela atitude. Também não podia culpar o universo. Era... quem era que decidia tudo? Não podia ser só ele. Pensou um instante enquanto saía da cama naquela manhã. Faculdade. Amigos. Compromissos sociais. Trabalho. Tudo isso cansava ele. Enquanto o dia passava pensou no quão não estava bem. Na verdade não estava nem bem nem mal. Só estava. Sem um propósito ou razão. Quando voltou pra casa decidiu que ele cantarolaria Franz Ferdinand. Depois cantaria Ira!. Foi cantando Wander Wildner que lembrou de uma garrafa de vinho.

Nessa garrafa de vinho encontrou a lembrança das conversas que tinha, anos atrás, numa cidade litorânea que morou anos atrás, com uma poetisa. Lembrou-se de que, quando se mudou para essa cidade atual, ele, ao contrário do que toda tecnologia podia oferecer, preferiu trocar cartas com a poetisa. Cartas de papel mesmo. Selo. Correio. Fila. Carteiro. Um real e pouco pra enviar. Dias para chegar. Dias para a resposta voltar passando pelo mesmo processo de carta, papel, selo, correio, fila, carteiro, um real e pouco e dias para chegar. Nas cartas amenidades, desejos, histórias "secretas", sonhos compartilhados. Mas, como tudo e sem saber quem foi, as cartas pararam. Falta de tempo de ambos os correspondentes. Tempo. Esse maldito vilão desde os tempos imemoriáveis. Aeon.

Conversou brevemente com a poetisa por meio dos recursos tecnológicos. Compartilharam o desejo de largar tudo e sair correndo mesmo sabendo que isso não era "permitido". Planejaram se programar e ir para uma ilha famosa. Tudo dependeria da Marianne e seu barrete frigio. Novamente a coisa vinha a depender de algo muito maior que ele. E isso, essa coisa de inúmeras coisas terem de acontecer para uma coisa dele dar certo, o sufocava. O matava. Os próximos dias prometiam ser uma mistura entre stress, irritação e depressão. Suspirou dando fim no último gole de vinho que restou na taça - achava absurdo beber vinho direto do gargalo, vinho demandava sofisticação, por isso a taça - pensando no que precisava fazer, como fazer e quanto isso demandaria dele. Foi então que uma figura que ele conhecia apenas da literatura o chamou. Conversaram horas. Ele sorriu com a auto-intitulada-ruiva-da-outra-dimensão-paralela e concordou quando ela falou de lhe transmitir energia e força para não desistir.

Foi então que ele trocou o sorriso de lado nos lábios. Planejou coisas. Respirou fundo. Precisava ser rápido. Tudo aconteceria como tem que acontecer. Lá fora chovia sem força. A partir de amanhã as coisas começariam a mudar. Ou começariam a começar a mudar. Ele sempre teve problemas para mudar. Ou a mudança vinha de uma vez só ou ele tinha de planejar tudo minuciosamente e morrer a cada passo da mudança. Estava pronto para morrer aos poucos? Teria de estar. A ruiva do universo paralelo falava com ele - mesmo ele achando certa esquizofrenia - que era assim mesmo. Que toda ruptura doi. Era isso. Quantas rupturas ele sobreviveu até hoje? Essa era só mais uma. Mais uma.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Hubb

A vida onde Aleph havia nascido não era boa, mas também não consigo chegava a ser ruim, as perspectivas de estudo e de trabalho não eram as melhores. Foi assim, nesse turbilhão de coisas que ele se deixou convencer pelo discurso de um grupo paramilitares desses que vez por outra matam uma centena de pessoas. Recebeu treinamento, sabia usar um kalashnikov como poucos da sua antiga vila, conhecia o complexo onde estava como a palma da sua mão, sabia os corredores, os túneis por que interligavam cada prédio... ele tinha encontrado um propósito pra sua vida. Farlabah, ao contrário dele, não se juntou ao grupo por vontade própria, mas não era prisioneira, ela podia ir embora a hora que quisesse. Mas, como ela mesma dizia, por enquanto estava bom. Aleph, por um acaso trombou com ela num dos tuneis. 

Ela estava cansada da violência que o grupo propagava, mas ele seguia cego, iludido pela propaganda do grupo. Eles não sabiam, mas um amava o outro. Por isso ele foi atras dela quando ela recolheu seus poucos pertences e estava indo pelo caminho que saía do complexo. Ele, desesperado sem saber o que sentia sacou a pistola e apontou para ela. Uma ameaça. Bateram boca. Quando ela deu as costas para ele, ele, com a mão esquerda, a segurou pelo braço. Ela tentou se soltar. Foi aí que veio o estampido. Lado esquerdo, próximo ao rim. Era fatal. Não imediato. Por isso mesmo ela tentou tomar a arma dele. Veio  segundo tiro. Meio do peito, pouco abaixo da caixa toracica. Os dois corpos caíram juntos. No ar as mãos se entrelaçaram. Descobriram o sentimento na hora do fim. Bem dizem que o ápice é a melhor coisa da vida. Vida. Ele dezessete. Ela dezesseis. 

Vida. 

Morte.



Nota do autor: "Hubb" é a pronúncia de "amor" em árabe, se fosse ser escrito em alfabeto árabe seria: حب