sábado, 15 de abril de 2017

Burocrática

Nunca foi fã de leis e códigos em geral. Tanto que fazia faculdade de algo mais aleatório possível. O sistema queria molda-la. A queriam, como dizia Pessoa, "burocrático, tributável" e tudo que ela queria era ser longe disso "inconstante, livre". Ainda que, para Janaína o conceito de "livre", liberdade fosse ser alguém sem compromissos que pudesse optar. Claro que tinha consciência de que perderia a liberdade quando começasse a trabalhar. Perderia a liberdade quando, eventualmente, começasse a namorar a sério. Pensar nisso a fez ter um calafrio. Não queria isso, queria sua liberdade emocional - ao menos ela - livre. Não estava pronta pra ficar sem seu espaço. 

Sem tirar o corpo da cama ou até mesmo se mover mais do que o necessário abriu a cortina vendo que, lá fora, chovia. Não tinha compromissos nesse sábado acinzentado. Seu novo amigo mantinha hábitos semelhantes aos dela: de quando em quando sumia, passava dias sem dar o menor sinal de vida. Talvez por isso que deu certo a amizade deles, se entendiam, tinham mais coisas em comum do que muitos casais ditos perfeitos - ainda que a tal perfeição, na concepção de Janaína, não existia em plano nenhum, nem mesmo um hipotético deus, caso existisse, seria perfeito.

Olhou as gotas d'água escorrendo no vidro enquanto puxava a coberta. "Foda-se", disse sem afastar os lábios. Com a ponta dos dedos puxou o fone. Os pingos, o trânsito, os barulhos eventuais dos vizinhos. Tudo ficou abafado quando ela ligou em alguma web rádio de metal-gótico-escandinavo e deixou-se enebriar pela melodia. Uma lágrima escorreu enquanto pensava nos versos de Pessoa. 

Estava burocrática. Comia. Bebia. Saía. Transava. Dormia. Assistia. Ria. Tudo automático. Tudo burocrático. Tudo pela máscara social que não conseguia tirar. Novamente Pessoa veio como um raio em seus pensamentos. E quando conseguisse tirar essa máscara? Se reconheceria? Estaria velha tal qual o cão tolerado pela gerência por ser inofensivo? Pensava em escrever versos com a essência musical. 

Pare. 

Respira. 

Afunda o rosto no travesseiro. 

Grita com toda a força.

Respira com dificuldade. 

Soluça.

Deixa sair.

Um trovão. 

A chuva aumentou.