sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Viração

Dizem que o corpo humano é composto, aproximadamente, de setenta por cento de água. Janaína sentia isso a cada instante que ficava alguns pares de segundos "aérea", tinha o sentimento de se afogar em si mesma. Não que fosse um sentimento complemente novo, mas dessa vez sentia ele como se fosse mais... definitivo.

Haviam algumas semanas, talvez uma trinca de meses que sentia tudo isso piorar gradativamente, cada dia que passava, cada instante que avançava rumo ao, cada vez mais incerto, futuro, esse afogar-se lhe trazia, além da sensação de morte uma incapacidade de se ligar às coisas ao seu redor. Um colega foi assaltado. Tanto faz. Um país distante diz querer soltar uma bomba que pode deflagrar uma guerra. Tanto faz. O orégano acabou. Ta, tanto faz. Sentia-se a espera de algo que estava por vir e por isso reagia apenas da forma que menos consumisse energia do seu corpo.

A verdade é que aguardava conflitos e, no fundo, se sentia como um país pequeno encravado entre dois incomensuravelmente maiores em extensão, poderio bélico e população. Respirou fundo trancando a casa. Era preciso o que o Paraguai buscou em sua guerra contra o Brasil e a Argentina séculos atrás: uma saída para o mar. Lembrou do carnaval e da sensação que teve ao ver o mar. Ela era do mar. Seu nome remetia ao mar. Mas uma decepção a afastou do mar. Quase como uma mágoa.

Desligou o aparelho celular, não tinha mais a presença de Helena para deixar avisado para onde iria, animal de estimação não quis e não demoraria tanto a ponto de suas plantas morrerem. Já na estrada se deixou olhar para as árvores, placas, casas, outros carros. Se deixou levar pela atmosfera de viajar. Apostou consigo mesma quem veria o mar primeiro. Se seu olho direito ou esquerdo. Ambos perderam, pois o atlântico surgiu na frente, após um pequeno aclive já no terço final da estrada. Só agora se deu conta que não trouxe mala. Apenas a bolsa com a câmera, o celular devidamente desligado, documentos e dinheiro um pouco além do valor da passagem. Pelo calor já dando o ar da graça estava com uma roupa leve. Nada excepcional, vestido longo solto com mangas curtas, uma sandália rasteirinha e a bolsa. Poderia passar por uma daquelas hippies chiques que viu em algum lugar ser tendência de moda de algum verão passado. Enfim desceu na rodoviária. 

O mar que estava indo encontrar não era o seu. Quer dizer, não era o mar que se habituou a ir quando precisava de apoio ou ajuda. Embora fosse mais ao norte era o mesmo oceano e... não, era o mesmo mar sim. Por alguns instantes se lembrou do carnaval e o quanto a cidade parecia vazia. Típico das cidades litorâneas fora da temporada. Ela cresceu numa dessas. Pensou naquele seu amigo com quem mal falou depois dos dias de folia. Será que ele ainda morava aqui?

Conforme se aproximava da praia sentia o cheiro característico. O sal no ar. Um sorriso fino se desenhou nos lábios de Janaína. O sol descia no horizonte atrás dela. Ainda da calçada ficou alguns minutos imóvel diante da imensidão. Três pessoas tiravam um barco do mar com o uso de troncos, uma maneira extremamente rudimentar e funcional. Tirou as sandálias e deu o primeiro passo sentindo a areia fofa entre os dedos. Uma lágrima ousou brotar no canto dos olhos e o sorriso se espalhou pelo restante dos lábios. Se esse mar fosse minimamente parecido com aquele que tinha como seu logo sentiria o que veio buscar. Caminhou na direção da rebentação até sentir a areia firme. Fechou os olhos e a água na qual se afogava ficou menos mortal. 

Ainda se sentia descolada das coisas humanas, achava tudo tão pequeno e efêmero que não valia a preocupação. Por outro lado sentia-se preocupada com o que estava por vir, o que poderia lhe tirar dessa inércia. Quando abriu os olhos já estava escuro. Na praia ninguém ficava, o barco já estava afastado da maré, um casal ao longe caminhava de mãos dadas indo embora, do outro lado uma figura com um cachorro se afastava. Era como se todos fossem embora temendo o vento negro. Ela nunca temeu. Aliás nunca usou esse nome. Preferia outro nome dado por um poeta do qual ela não lembrava o nome mas que alguém tinha musicado.

É viração.