sábado, 21 de outubro de 2017

Calibre Trinta e Oito

O cano frio daquela pistola calibre trinta e oito na minha testa era o ponto alto do dia. Os olhos semicerrados conjurando qualquer maldição ao homem detrás da arma. Por alguns instantes me veio à mente a música do Belchior “se depois de cantar você ainda quiser me matar, mate-me logo às três que a noite tenho um compromisso que não posso faltar”. Lembrar de tal canção me fez esboçar um fino sorriso e relembrar o dia de hoje até agora.

De manhã aquele filho da puta do vizinho martelava o motor do fusca mil novecentos e setenta e quatro como se fosse mecânico. Talvez ele arrumasse, afinal, os volkswagen sedans sempre tiveram formas simples de reparo onde meio metro de arame, uma alicate e dois elásticos de dinheiro resolviam noventa por cento dos problemas, os outros dez era necessário mais ferramentas como uma marreta e clipes de papel. Não que eu tenha ficado irritado com o barulho, pois os fones intra-auriculares que eu deixava ao lado da cama tinham essa finalidade mesmo. Voltei a dormir acordando só com uma imensa vontade de mijar.

Quando levantei já pensei em ficar em pé, afinal, o dia poderia ser ótimo, meu horóscopo dizia algo como a passagem de vênus por júpiter que passava pela lua e entraria no sol faria meu dia ser proveitoso sobretudo no que tangia o lado sentimental e financeiro. Um contrassenso uma vez que, se o lado sentimental estivesse em dia - o que não era o caso - meu lado financeiro estaria fodido, afinal, não existe relacionamento sentimental sem custos, isso, claro, se ele existisse, o que, obviamente, também não era sinal de que o lado financeiro estava bom. Não estava. Também não devo dizer que estava ruim, afinal tinha comida na mesa e os boletos na gaveta estavam relativamente em dia.

Depois de comer fui pra rua. Não queria, juro. Mas era necessário, afinal médicos recomendam alguns minutos de sol todo dia para produção, captação ou qualquer coisa assim de vitamina D. Uma vitamina que, segundo eles próprios, vinha só da luz do sol. Claro que sol demais dava câncer, mas não era essa a questão. Sempre ouvi de tias mais velhas que precisava tomar vitamina e blá-blá-blá. Tudo uma baboseira sem fim. No fim nossa alimentação e hábitos nunca vão ser suficientes para que nossa saúde fique em dia. No fim médicos estavam a serviço de laboratórios que faziam, pasmem, vitaminas e remédios para câncer. Bela forma de nos foder, sistema.

O dia seguia bem mais ou menos quando um temporal daqueles que não dura dez minutos mas derruba árvores velhas que a prefeitura não podou porque algum ambientalista babaca disse que aquela árvore era um ser vivo com sentimentos e sensações e que podá-la era pior que um assassinato de bebês. Certamente essa pessoa nunca viu uma floresta de verdade e viu que, paulatinamente, todas as árvores caem seja por chuva, vento, seca, velhice, castor, orquídea assassina ou qualquer coisa semelhante a isso. Devia comprar um cantil daqueles de alcoólatra de filme.

Pisar numa poça e lavar meu pé dentro do tênis me fez repensar a ideia do cantil. Melhor não. A merda é que meu pé ficou completamente molhado por uma hora além do tempo da chuva. Aí quando, enfim, dá a hora de meter o pé para casa dou de cara com um sol fodidamente alto no céu. Meu primeiro pensamento é “mazoquê”, assim mesmo, tudo junto e dessa forma sonora, embora o som lembre mais um guarda do antigo jogo max payne onde, quando o personagem-título do jogo entrava no ambiente o guarda dizia, em bom português “masqueeeee” assim, prolongado, ele não durava muito, afinal, o max payne era foda.

E agora, parado nesse trânsito doentio cheio de mães levando seus filhos para casa e jovens universitários indo para aula que na verdade era o bar do outro lado da rua - não precisam me enganar, já fui um de vocês - acabam por parar todas as ruas. Daqui meia hora tudo vai estar mais deserto que ruas do velho oeste em hora de duelo. Por falar em duelo, voltemos ao instante atual, o que me fez reviver o dia inteiro até aqui e ficar puto com o assaltante a ponto de ordenar ele a colocar o cano da arma na minha testa.

-Vai atirar ou não? Porque se não vai dá o fora que hoje não tô num dia bom.

-Não me provoca, cara, eu já passei muitos por menos.

Blefe. Uma das condições mais interessantes em pessoas em situações limítrofes. Fazia tempo que eu não jogava um truco. Ele ficou quase um minuto simulando que ia atirar. Ah, que se foda. Saí do carro com a arma dele na minha testa. Ele era minimamente mais alto que eu. Ele grunhiu algo.

-Facilitei pra você, agora resolve logo se vai atirar ou pára de ocupar meu tempo com essa tentativa de merda de assalto.

Foi agora que o braço dele fraquejou, achei que ia ganhar uma coronhada, mas nem pra isso ele servia. Hora de pensar rápido. Rasteira e um tiro ao lado do ouvido esquerdo, sem pegar a cartilage. Vamos melhorar isso, um tiro do lado do ouvido direito também. Se os livros de ciência da época de escola estão certos o ouvido é quem controla o equilíbrio por meio de líquidos e, uma vez que algo perturbasse esses líquidos com um ruído alto deixaria a pessoa desnorteada por um bom tempo. Pugilistas usavam isso, por isso no treinamento eles usavam aquele capacete ridículo de espuma. Ouvi sirenes ao longe. Pobre diabo, mais um pro sistema prisional que não resolve merda nenhuma. Ou talvez ajudasse, ladrões pequenos assim eram encaminhados para algumas prisões modelo onde produziam roupas, bola de futebol… mão de obra barata para o capital ganhar sempre. Entrei no carro e saí calmamente.

Talvez devesse repensar naquela ideia do cantil.