sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Sarjeta II

E agora? Pensa, pensa. Quem sabe as roupas daquela anta coubessem nela. Apesar do alcoolismo estar presente nunca manti a casa bagunçada. A faxina era rara, é verdade, mas ainda assim haviam faxinas periódicas. A deitei em minha cama e, com uma toalha molhada limpei o rosto dela. Bonita. As roupas estavam inteiras, um pouco sujas da sarjeta, mas ainda assim limpas. Assim que abri a bolsa ela abriu os olhos. Ótimo. Nenhuma lesão na cabeça. O celular dela tinha senha. Documentos enfim. Helena e... ela pediu água. Servi. Enquanto ela bebia ofereci uma ducha e carona até em casa. Ainda que eu não tivesse carro podia dar um chute na porta da bicha e pedir o dela. Pedir não. Chutava a porta, colocava a pistola na cara e ia pegando a chave. Depois devolvia, ou não, tanto faz.

Ela aceitou pedindo desculpa. No armário tinham toalhas limpas que trouxe da lavanderia ontem, deu sorte. Pensando um pouco fechei a porta e me sentei na sala abrindo uma cerveja. Não parecia uma riquinha, parecia só uma garota assustada que confiou em amigos e esses amigos que devem ter bebido tanto quanto ela a esqueceram por ali. Faz parte. Eu mesmo já esqueci e fui esquecido por companheiros no balcão do bar, na sarjeta... até mesmo na frente da corporação. Bons tempos. O delegado me jogou pra dentro, deu um café amargo e pronto, eu estava pronto pra ação. Hoje em dia nem dirigir bebado podia mais. O mundo estava, realmente, acabando. Maldição.

Nem quinze minutos se passaram a moça, praticamente uma menina, saiu do quarto com as mesmas roupas que chegou. Quinze minutos e eu tinha matado quatro cervejas. Forte abraço pros alcoolicos anônimos. Não consegui ficar mais do que cinco minutos lá sem querer socar a cara de alguem. Melhor pra eles eu ter saído. Ela se aproximou receosa, claro. Prudência e água de coco não fazem mal a ninguem. Falei que era da policia, mostrei o distintivo, contei um trecho curto da minha história de vida. Pulei as partes chatas e só falei das coisas legais, tipo pegar bandido, dar tiro em pneu de carroo... essas babaquices que acham que policial faz.

Apesar de parecer emocionalmente instavel ela parecia boa pessoa. Boas pessoas também tem dias ruins. Ela se sentou no sofá ao meu lado e contou sua história. Brigas na familia, perda de pessoas queridas. No suprassumo de qualquer pessoa tinha problemas com familiares e perda de pessoas amadas e acabava descontando isso de alguma forma. Drogas, alcool, auto-mutilação chegando ao ápice do suicidio. A vizinha crentelha devia pregar que isso era pecado. Tanto pecado quanto ela não respeitar os outros com sua ladainha irritante. Ela é outra que merecia um belo de um disparo de 357 no meio da cara. Mas com ela preferia não arriscar, afinal vai que o senhor dela me ferra ali mais pra frente? Tomar tiro, apesar de ser bonitinho na TV, doi pra caralho.

Assim que ela se recompôs disse que tinha que ir e ficava resmungando baixinho que o pai dela ia matar ela. Não duvido. Eu mataria se fosse minha filha. Mas essa coisa de porre é coisa da idade, é daquelas experiências que todo mundo tem que ter na vida pra aprender como é e ver se gosta ou não. Eu, particularmente, gostei. Assim que saímos do apartamento caminhamos devagar até o sexto andar. Bati educadamente na porta e pedi que Helena esperasse um minuto. Vinte segundos e voltei com as chaves do carro e três notas de dez. No caminho achei prudente parar em alguma lanchonete e comer algo. Passavam das quatro e meia quando paguei. Um café pra viagem. Amargo.

Sendo guiado por ela chegamos a uma rua tranquila, algumas árvores, calçada bem cuidada, varrida, muros sem pichação... esse bairro era um dos menos violentos da cidade. A indicação da casa me fez parar em frente à um pequeno sobrado com pintura começando a descascar na parte próxima da janela da direita. Uma frondosa árovre dava o clima de casa do interior àquele pedacinho de tranquilidade. Ela agradeceu e já soltava o cinto de segurança quando puxei do bolso meu cartão. Pro caso de encrencas com a familia os pais dela que me ligassem. Se ela precisasse eu livraria a barra dela. Voltei pro meu muquifo. Devolvi as chaves pro vizinho e fui direto pra cama. Pensar nela me trouxe a lembrança de minha filha. Amanha ligaria pra ela. Quem sabe nas férias eu não visitava ela? Assim como minha pequena, Helena ainda tinha a vida inteira pela frente. E eu, tecnicamente também. Sorri satisfeito. Dormi como a muito não dormia. Dormi tranquilo e sereno.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sarjeta I

Decididamente hoje eu não tinha bebido o suficiente. E o pior que hoje, depois de trinta e seis horas de plantão naquela pocilga, tudo que eu mais precisava era um bom porre pra afastar meus demonios e me fazer relaxar o suficiente pra não chegar em casa chutando a porta do vizinho com aquele seu louvor evangelico ou aquele vizinho viado que ia me ouvir subir e ia parar no batente da porta praticamente se oferecendo. Aquela bosta de prédio não tinha nem a porra de um elevador. Também, com essa ninharia de salário que pagavam, o máximo que dava pra morar, precariamente, era nesse antro. Logo eu que tive uma infância católica. Se bem que foda-se, nunca fui praticante. Se pisei numa igreja foram duas duzias de vezes.

Ao sair pensei em acender um cigarro. Ouvi dizer que da cancêr de esofago, de pulmão, deixa o cara brocha e pode até matar. Dei a primeira tragada. O calor que essa porcaria jogava dentro do meu peito era tranquilizante. Aspirei a maior parte da fumaça que pairou no ar depois da baforada. A garganta já deu o primeiro sinal da infecção de dias atrás. Soquei a carteira de cigarro no bolso do paletó. Debaixo do ombro estava com minha fiel amiga - uma Magnum 357 -, que me protegeria do que quer que fosse. Amém.

Nessas horas que penso na minha ex-mulher - aquela vadia - que sempre me sugeriu um chapeu, dizia que eu ficaria parecendo aqueles patrulheiros que ela via na TV. Os rangers. O Chuck Norris. Duvido que aquele cara seria tão macho a ponto de entrar no meu distrito e aguentar ficar um dia e meio sem dormir e, depois de sair, ir pro bar mais sujo da cidade encher a cara. A merda desses cigarros é que duravam pouco e custavam caro. Ouvi dizer que o governo aumentou o imposto sobre eles numa tentativa de fazer as pessoas pararem de comprar. Só a porra do meu salário que não aumentava. Maldição.

Duas quadras depois e um vulto jogado na calçada. Tsc. Merda. Quando eu digo na delegacia que o mundo ta se acabando e piorando a cada dia me chamam de exagerado, de doente. Bando de crianças recém-saídos da academia querem duvidar de mim, que estou tem mais de vinte anos aqui. Babacas. Cheguei perto, afinal vai que é mais um daqueles riquinhos de bosta que se entupiram de droga e agora estão morrendo numa overdose lenta e com as burras cheias de grana? De vez em quando parece que o cara lá de cima vai com a minha cara, sei lá. Ao chegar mais perto vejo que é uma garota, não devia ter mais de vinte anos. Irônico. O quê ela tinha na vida eu tinha nas ruas. Por um segundo me lembrou minha filha que aquela puta levou. A última vez que falei com ela - anos atrás - ela tinha bons planos pro futuro: ser advogada, casar, formar familia...

Dei uma olhada rápida pra cima. O relógio marcava três da manhã. Ela estava bem vestida. Não parecia com aquelas quengas que faziam ponto aqui perto. Chequei o pulso. Estava viva. Da boca dela escorria um liquido esbranquiçado. Essa fez a festa que não fiz. Maldição. Olhei em volta, ninguem ao redor. Mas, se eu a deixasse aqui logo alguem daria um jeito nela. A peguei no colo. Pra onde levar? Nem sabia onde ela morava. Ao menos ela tinha uma bolsa. Catei também, toda evidência coletada pode ser útil numa investigação, não é?! Sorri de canto com minha canalhice em pensar isso. Algum daqueles peritos esnobes tinha dito isso. Aqueles merdas ganhavam o mesmo que eu pra não encarar o perigo. Maldição.

Como estava relativamente perto preferi leva-la ao meu apartamento até o porre dela passar. Caralho. E essa porra de elevador não funcionando. Mas são só seis andares, nem da pra cansar. Afinal, o quê são quase dois dias sem dormir, alma entupida de café e o conhaque vagabundo de agora a pouco? Cansaço é pra crianças. A bichinha do quarto andar ficou posessa ao me ver com uma mulher no colo e voltou pra dentro do seu muquifo bravinha. Ótimo. Se vier me encher o saco dou um tiro com a 357 e já era. Digo que não estava por perto e ela se matou de desgosto. Posso forjar a cena que eu quiser. Destranquei a porta do meu apartamento e, com um belo de um chute, arregacei a porta. Com outro chute a fechei assim que passei.


... termina na sexta-feira!

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

os 26

Eu tinha dito pra mim mesmo (e pra mais algumas pessoas) que eu não escreveria nenhuma crônica sobre os vinte e seis por simplesmente não ter nada pra escrever a respeito da chegada dos vinte e seis anos. Decidi isso unilateralmente ignorando o fato da audiência desse blog meio que esperar algo assim vindo de mim no dia do meu aniversário... a verdade é que eu não tinha nada pra escrever, fiquei pensando por vários dias até decidir isso de não escrever.

Ocorre que essa deusa semi-louca que é a inspiração (que, pra mim, além de ser uma especie de fada é quem me coloca a "pena à mão") veio e me deu inúmeras ideias do que escrever, do que falar e tudo mais, mas isso não era o suficiente, então hoje eu estava lavando louça quando me veio a inspiração certa, aquela que, além da pena na mão, me cutucou até que eu viesse aqui escrever essas linhas. O quê me veio foi variar, eu me encontro numa fase de mudanças no que diz respeito a literatura e formas que eu escrevo, mentalmente ando em uma torrente cerebral imensa que, infelizmente, se esvaem antes que eu possa agarrar uma que seja.

Fazem dias que meu objetivo maior era estudar para o vestibular que vou fazer no dia vinte e quatro (quatro dias mais velho!) e andava mais racional que outra coisa, chegando a conclusões na quimica e na física que, depois do vestibular, não vão ter grandes utilidades práticas na vida (talvez se eu virar terrorista e for fazer uma bomba... abraços Obama! hahahaha) então estudo e classifico esse conhecimento como temporário, algo que, daqui alguns meses, eu malmente vou lembrar que uma transformação isocorica é uma transformação termodinamica onde tanto a temperatura quanto a pressão podem aumentar sobre um gás ideal que ele vai manter o mesmo volume.

Se, nos anos ateriores eu meio que fiz planos e não via grandes coisas feitas no meu passado, se as vesperas do cumpleaños, eu me via melancólico e relativamente deprimido e preocupado com o futuro agora eu vejo que sim, fiz muita coisa no passado, muitas coisas ruins, muitas coisas boas, muita merda e muita coisa cheirosa. E a tendência, é eu fazer igual no futuro, claro que as perspectivas pro amanha são ótimas, os planos, sonhos, desejos nunca estiveram tão pertos de se concretizarem e tals... mas, quero aproveitar a minha crônica de aniversário não pra planejar o praguejar. Não. Quero agradecer não só pra todos que vieram até aqui comigo, como pra todos que ainda vem comigo, quero agradecer a meus pais, ainda que eu não seja o melhor dos filhos, acho que um dia eu chego lá!

A verdade é que, umas três semanas atrás (ou seja: já tinha começado o meu "inferno astral" (ainda que eu não acredite cegamente nisso)) meu dente do siso começou a querer nascer (meu siso cresce um pouco e pára, cresce, e pára, como se o juízo me viesse aos poucos) e doer um pouco, não aquelas dor de sofrer, mas aquela dorzinha chata que incomoda. Depois de ler o Gita (pois é, acabei gostando do budismo...) eu acabei chegando a conclusão de que não vale a pena se preocupar tanto com a matéria (claro que eu adoro ganhar presentes, conquistar as coisas físicas, ainda não atingi o nível de evolução que eu supere essa "deficiência") e sim com as pessoas, em fazer o Bem sempre, sempre seguir pelo caminho da reta-ação. Juntei meu siso com a reta-ação só pra chegar a conclusão de que, se eu estou aqui hoje, alguns dias antes do aniversário propriamente dito, com um fino sorriso nos lábios e uma lágrima teimosa quererndo sair, é porque eu me sinto bem. Estranhamente bem. Estou preocupado com o vestibular, em conseguir um emprego no começo do ano que vem... mas, sinto aqui dentro de mim, que tudo isso vai aparecer ao seu tempo.

Me prolonguei e devo ter me perdido no meio da crônica, mas, esse ano, quero simplesmente agradecer aos meus amigos e amigas, meus pais, meu cachorro e até, porque não, Deus por tudo que vivi/senti (pra mim, as sensações/sentimentos, sempre valeram mais do que vivências em si) até hoje e fazer um pequeno desejo: que os vinte e seis sejam vinte e seis vezes melhores do que foram os vinte e cinco!

sábado, 9 de novembro de 2013

Tranca

Entrar nesse prédio nunca foi dificil. Não pra mim. Portão com grade, porteiro, cerca eletrificada... nada me impedia de entrar. Sempre dava um jeito e entrava. E agora cá estava eu, a poucos lances de escada da porta dela. Meu joelho dolorido denunciava a falta de um elevador aqui, porém era o quê deixava o preço do apartamento menor em comparação à outros da mesma região e mesmo tamanho. Bati nos bolsos, merda, esqueci (ou perdi, não sei) a chave do apartamento dela. E era o com mais trancas no total, eram duas além da principal que ficava do lado direito. O problema é que eu quem tinha dito para ela instalar essas outras duas fechaduras, pois, apesar de Paris ser uma cidade turistica e, em teoria, haver um grande efetivo policial a imensa maioria dos policiais estava cuidando, obviamente, dos turistas deixando o resto da cidade à propria sorte, ou, como ela gostava de dizer "ao Deus dará".

Não tinha problema. Chequei embaixo do tapete na fina esperança dela ainda ter o costume de deixar as chaves debaixo do tapete. Não... ela sabia que eu estava viajando, que eu estaria na República Tcheca, mais precisamente em Praga, resolvendo alguns assuntos pendentes acerca de problemas antigos que, com o passar do tempo o apetite de Cronos aumentava. Franzi o cenho dando uma rapida olhada em volta. O corredor estava escuro o suficiente pra minha presença não se fazer percebida. De debaixo de alguma das portas vinha um som estereofônico de uma orquestra tocando juntamente de uma banda de rock, dessas mais atuais. Será que seria um DVD recém-comprado e tocado em alto volume quando a mãe do adolescente que ouvia saiu? Ou o pai que resolveu ver e descobriu que era bom, ou ainda a propria mãe que queria ver o quê seus filhos ouviam e acabou gostando, ou, ainda, quem sabe alguem que morava sozinho e pouco se importava com o volume. Muito embora pouco importava mesmo, as paredes dos apartamentos eram grossas o suficiente pra isolar o som, ao contrário das portas que, apesar de terem pequenos adornos que simulam uma porta trabalhada habilmente por um carpinteiro, eram finas e simples demais, ao ponto de que o som escapava por ela e ocupava o corredor.

De um dos bolsos - o da direita na parte de trás - tirei um pequeno arame. A "chave". Com certa facilidade destranquei a tranca do meio. A de cima e, consequentemente a de baixo, era daquelas do tipo tetra. Mais dificeis de se abrir, com uma tranca dupla que tinha que ser acionada simultaneamente. A maior dificuldade em abrir ela, talvez seja o fato dela equivaler a quatro chaves normais e não apenas duas, como pode parecer. Tanto que cópias dessas chaves eram inviaveis, era muito mais prático simplesmente se trocar a fechadura inteira. Volto a olhar em volta pensando ter ouvido um barulho... não. Impressão minha. Me abaixo pra "trabalhar" a fechadura de baixo. Só agora me veio, quase que de relance, o fato de que, se ela estivesse em casa, a tranca pega-ladrão estaria fechada, o quê tornaria o trabalho de abrir as outras três fechaduras inútil, porque aquela só se abria por dentro. Embora com um tranco bem dado provavelmente ela deveria abrir. Provavelmente.

Enfim a fechadura cedeu. Venci as três em pouco mais de dois minutos. Deveria ser um novo recorde. Agora apareceriam fotografos, uma apresentadora me felicitando pelo feito, platéia entusiasmada aplaudindo, o auditor do Guiness Book me comprimentando e dando os parabéns, o microfone da apresentadora viria à minha mão e eu agradeceria todos que torceram por mim para que eu conseguisse realizar esse feito e tudo mais. Agradeceria a minha mãe, ao meu pai que me ensinou a arrombar portas, à minha irmã por me apoiar, ao meu cachorro, ao velhinho que fica tocando sanfona próximo do Arco do Triúnfo, no fim da Chantz Elisè. Pisquei e a realidade voltou completa. A escuridão, os fotografos, a apresentadora, o auditor, a platéia e o recorde sumiram dando lugar ao som que ainda vazava por baixo da porta do oitocentos e dois.

Girei a fechadura. Ela não estava. Chequei o relógio. Vinte e duas horas e alguns minutos. Onde ela estava? Fechei a porta atrás de mim, trancando apenas a do meio. Adorava esse apartamento, tinha a vista da Torrei Eiffel toda iluminada, agora ganhando ainda mais luz pelo natal que se aproximava. Fui à cozinha e coloquei água para ferver. O vento frio começava a cortar nesse meio de novembro, o inverno esse ano prometia ser menos rigoroso que em anos anteriores. Talvez o aquecimento global fosse verdade afinal de contas. Caminhei pelo apartamento vendo que um dos quartos foi tranformado em um pequeno estúdio, sobre a cama dela algumas partituras... provavelmente ela tinha se inspirado por música agora. Faziam o quê? Dois, talvez três anos que não vinha aqui. Nossos últimos encontros sempre foram ou em minha cobertura, seis quarteirões daqui, ou em Edimburgo. A chaleira avisou com aquele apito irritante que a água estava quente e pronta pro meu chá. Sejamos britânicos, eu pensei fazendo um chá de laranja com gotas de leite e limão, mas sem açúcar. Caminhei na direção da sacada, queria ver a obra do Gustav brilhando e bebericar minha "água quente com gosto", como ela sempre disse. O quadro que ela havia pintado de mim, anos atrás, me encarou por alguns segundos. Cronos estava cada vez pior comigo. Me sentei e beberiquei o chá. Foi quando a porta do apartamento se abriu. Meu único movimento, praticamente involuntario, foi o canto dos lábios formando um fino sorriso. Logo ela viria ao meu encontro.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Pão Francês

Faziam algumas semanas que ele não encontrava uma padaria decente no seu bairro. A cidade nova era boa de se viver, o ar era mais tranquilo, a praia ficava a poucos minutos de moto, os pores-de-sol eram infinitamente mais coloridos e a pianista havia entrado em sua vida, ele não saberia dizer se entrado para ficar, mas, como diria um de seus poetas preferidos "que seja eterno enquanto dure". Pensar nessa frase lhe fazia pensar nela... foi eterno enquanto durou. Quer dizer, isso se tivesse realmente acabado. Aquela SMS enviada após a noite de trovões em que sua mente se encontrava era o quê seu coração sentia, ainda a amava, claro, mas era melhor se manter afastado por algum tempo, tal qual a música do skank "Em paz eu digo que eu sou, o antigo do que vai adiante, sem mais eu fico onde estou, prefiro continuar distante"... Mas, na sequencia da playlist vinha outra frase que ecoava em sua mente "... e quando o sol se inclinar, eu posso por uma toalha e te servir o jantar...". Jantar. Ontem não havia comprado pão, a padaria do bairro era terrivel, a melhor era uma quase do outro lado da cidade, próxima da praia. Olhou o relógio, checou a carteira. Deu de ombros pegando as chaves e indo até a garagem. Colocou a jaqueta de couro, o capacete, trancou a casa e saiu.

A estrada seguia parecida com dois meses atrás. A pianista encontrava-se em um congresso de um mês sobre pianos. E ele tinha pequenos trabalhos a fazer, a grande maioria deles já havia sido feitos e um de seus antigos clientes o tinha chamado. Ele, sem querer recusar e sem saber se poderia aceitar, disse que assim que estivesse na cidade daria um toque ao tal cliente. Na superficie de sua mente era esse o motivo de estar viajando as mais de cinquenta milhas entre sua casa e aquela cidade. Se fechasse os olhos sabia onde seu GPS mental o levaria, por isso permaneceu de olhos bem abertos. No caminho resolveu parar e almoçar, enquanto almoçava tratou de negocios com o cliente. A tarde o trabalho transcorreu mais rápido do que ele planejava. Antes de sair do lugar deu uma rápida olhada pra cima como se perguntasse "estas me mandando um sinal?". Como a resposta dela nunca havia sido mandada ele pensou mil coisas, menos a mais óbvia, que talvez ela estivesse sem créditos no celular para responde-lo.

O sol se arrastava lento para o horizonte, na direção das montanhas que, aqui, eram feitas de concreto até onde a vista se alcançava. Decidiu se permitir e ir até lá. Tinha de ir. Era sua obrigação. Mesmo depois de tudo o que aconteceu sentia falta daquele lugar pequeno, não tão calmo, não tão limpo, não tão perfeito, mas ainda assim era a melhor padaria que ele conhecia. Ao estacionar na frente da mesma olhou de relance o prédio dela, no fim da rua, ele seguia com o mesmo tom salmão meio desbotado pelos anos... provavelmente daqui não mais de dois anos alguem mandaria pintar afim de tornar o edificio mais valioso e, quem sabe, aumentar o condominio, melhorar a reocupação, pois muitos haviam se mudado para outros apartamentos mais bem localizados, maiores, com as paredes mais grossas e prestações menores. Maldita espucalação imobiliaria.

Se sentou ao balcão. O lugar seguia identico ao que se lembrava. Olhou rapidamente em volta temendo vê-la. Ela não estava aqui. Sorriu quando o dono do lugar se aproximou dele e o cumprimentou. Conversaram por bons dez minutos, ele pediu um queijo quente e uma soda nesse meio tempo. Ao primeiro pedaço de pão com queijo derretido descendo pela garganta dele um misto de felicidade e saudade o inundou. O quanto ele estava com saudade daquilo! O sol se afastou mais na direção do horizonte, foi então que ele sentiu um perfume conhecido. Aquele perfume que ele havia dado para ela anos atrás e ela tomou por "... meu 'cheiro' daqui pra frente.".

Ela olhou, ele olhou. Ela sorriu, ele sorriu. O sorriso dela se alargou, o sorriso dele se alargou. Ela corou suavemente, ele corou suavemente. Apesar de estar cheia, a padaria tinha dois bancos vazios: um próximo do banheiro, que praticamente ninguem sentava-se nunca e outro, onde ele, intuitivamente, havia posto o capacete. Ele tirou o capacete, ela se aproximou, ele se sentiu um adolescente que via aquela menina de que ele sempre foi afim e ela vinha pedir ajuda com alguma matéria que ele sabia. Ela sorriu. Estava num vestido solto, desses de verão, com borboletas desenhadas no tecido, nos pés uma sandália com um salto baixo, provavelmente ela veio apenas buscar pão, como sempre. Ela agradeceu e se sentou ao lado dele. Os olhares se cruzaram. As mãos dele que, até então, estavam sobre o balcão, agora estavam entre "vou pro colo" e "fico aqui", no fim elas acabaram ficando como se grudadas ao balcão. A mão esquerda se precipitou aproximando-se da dela, que pousou no balcão com tamanha graça e elegancia que parecia ter asas nas pontas dos dedos que frearam ao máximo o pouso. No inicio o assunto foi o clichê "como tem passado?", depois o assunto foi se prolongando, conforme a noite tomava seu lugar no céu e a lua brotava no exato oposto de onde o sol havia pego o rumo para o Japão. Aquela noite prometia ser longa.

sábado, 21 de setembro de 2013

Maré

Era estranho como os dias passavam praticamente sem nenhuma alteração. Para ele os dias, as sensações, todas as coisas estavam paradas. O novo porta-retratos na estante da sala brilhava quase sem poeira, a foto ainda era dele, mas agora era com a pianista em frente ao mar. Depois daquele dia bebendo vinho. Tinha sido doloroso aquilo de tirar a foto dela dali da sala. Ainda que não tivesse tirado completamente a foto dela de suas vistas. Ela estava em sua mesa de trabalho, onde repousavam diversos livros abertos, lidos pela metade, desenhos pela metade, alguns CDs, carrinhos de coleção... aquela bagunça era ele. E aquele olhar dela por sobre a bagunça era a desaprovação a isso tudo. Talvez por isso que ele não arrumava nada, queria afrontar, queria pirraçar como uma criança que não ganha o brinquedo que queria. Talvez por isso que ele e a pianista não se falavam haviam dias, a moça não sabia como reverter a situação a seu favor e optou por se afastar... esse era o destino dele afinal, ficar sozinho. Suspirou tirando alguns papeis para o lado.

Dois envelopes que havia pego na caixa de correio mais cedo ainda esperavam para serem abertos. Uma conta e um envelope daqueles comuns, que se compra em papelaria e tem aquela borda mesclando verde e amarelo. A chuva havia borrado o destinatário, borrado apenas o nome, ainda podia ver partes do endereço. Com o estilete abriu tomando cuidado para não estragar a carta. Letra bonita. Palavras bonitas que levaram ele às lágrimas, não só pelo escrito, mas pela carta, papel, físico, algo além da efemeridade de e-mails, mensagens de celular... ao fim a assinatura era da pianista e o "p.s." pedia que ele enviasse mensagem de texto quando precisasse. Ele sorriu ao fim da carta curta, escrita em uma página dessas com muitas linhas pequenas, onde se escrevem partituras. Deixou o papel sobre a mesa e foi para a laje, apenas com a gaita de boca.

Tentava tocar alguma coisa, qualquer coisa. Era impossivel, era como se o pouco dom de música que tinha tivesse fugido dele e ido embora, talvez para sempre. Que merda. Quando tomou o celular nas mãos afim de pedir ajuda o portão se abriu. Ficou em silêncio deixando a visita que o encontrasse. No fundo ele queria que fosse... fosse... quem ele queria que fosse? Ela? A pianista? A prima? E se fosse um bandido que notou a porta aberta e resolveu tentar a sorte? Esperou dois minutos, contados no visor do celular. Ninguem veio até a laje, o que era habitual, afinal todo mundo que o conhecia sabia que, se ele não estivesse dentro de casa, com a porta dos fundos aberta, ele estaria na laje.

Desceu temendo encontrar alguem armado. A pequena casa com as cortinas fechadas, as luzes apagadas, o escuro dominava o ambiente. Se já tinha algum receio de encontrar alguem mal encarado, violento, criminoso seu temor aumentou. Com o celular em mãos digitou o número de emergência ainda sem discar. Ouviu um barulho vindo da sala. Caminhou a passos temerarios, lembrou de filmes americanos em que sempre surgia um taco de beisebol na mão do mocinho e ele se livrava de qualquer marginal. Havia um pequeno brilho naquele ambiente, parecia o crepitar de uma vela. Se aproximou com o dedo sobre o botão de discar para a emergência. Seu temor, seu até medo se tornou um sorriso fino que se prolongou por toda a extensão possivel de seus lábios.

Era a pianista, um violão no colo, sentada sobre o tapete e uma vela dessas com cheiro de flor de laranja em frente dela. Ele se sentou ao lado dela, o dia ameaçava chover, as nuvens haviam rondado o dia inteiro, era inevitavel que viesse a tempestade. Conversaram alguns minutos e as luzes da cidade ao redor da casa invadiram a janela e o comodo, apesar das cortinas. O som de água caindo no telhado com força, os raios seguidos de trovões anunciavam que perduraria aquela situação. Foi no instante que ela começou a dedilhar uma música e anunciar que era para ele a energia eletrica acabou deixando tudo ao redor escuro, as ruas, o rádio do vizinho, as casas, as televisões... apenas aquela vela os iluminava. Foi então que ela dedilhou cantando em tom baixo, suavemente rouco sem ser sensual, quase numa confissão e a música caiu como uma onda de maré alta quebrando na praia, tamanho o estrondo que fez nele. Cantaram juntos muitas outras músicas, mas aquela primeira música ficou presa à mente dele. E provavelmente da pianista também quando ela a ouviu e soube que era para ele.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Bebendo Vinho

Não seria a primeira garrafa de vinho que morria em suas mãos. Não seria, muito menos, a última. Mas era a primeira que descia com tanta... facilidade? Devia ser. Sinal de que o figado estava cada vez mais amaciado, cada vez mais sereno. Tinha coisas a fazer, mas hoje ignoraria todas elas e dormiria com o celular desligado, telefone fora da parede, despertador sem as pilhas. Só não desligou a chave geral da casa por não querer comida estragada na geladeira. Se afundou nas cobertas e deixou que o porre fizesse o trabalho por ele. Dormir sem se preocupar com o dia seguinte. E como dormiu. Doze horas depois acordou sem dor de cabeça. O corpo todo relaxado. Tomou um banho demorado e religou o celular enquanto preparava uma bela xícara de leite com achocolatado.

Duas ligações e meia dúzia de mensagens. Primeiro as mensagens. Propaganda da operadora, um boa noite de alguem que morava extremamente longe e um convite. Nas ligações o mesmo número, repetido. A mensagem mais recente era a reclamação do número das chamadas perdidas "não vai atender ou não pode? Preciso te ver, assim que puder, me liga, beijos.". Bebeu um gole do achocolatado gelado - odiava beber isso quente, lembrava de coisas ruins da infância, coisas que siquer lembrava, mas sabia que tinham sido ruins - pensando se deveria responder. Na mesa uma moeda de cinquenta centavos - o troco pela garrafa de vinho - lhe deixava com a ideia de tirar na sorte se responderia ou não. Alea jacta est. Lançou a moeda ao ar. Sorriu de canto. A moeda parecia saber o quê ele desejava fazer. Ela devia saber o quê ele planejava. Bom ser compreendido. Respondeu a mensagem com um "amanha, na praia, fim de tarde, leve o violão que levo a gaita.".

Amanha. Porque hoje tinha uma coisa mais importante a fazer. Comeu um qualquer coisa na geladeira, colocou a jaqueta de couro, pegou o capacete, a moto e subiu a serra. Podia ir de olhos fechados que chegaria ao objetivo. Ao longe pode ver a fachada na cor salmão surgir no horizonte. A poluição daqui era terrivel e, no trajeto ate relativamente curto entre a rodovia e aquele prédio, já havia espirrado três vezes. Na mochila tinha remédio pra isso. Resolveu não tomar. Que se foda. Estacionou diante da padaria. Comeu um queijo quente e um pão de queijo. Respirou fundo e adentrou no edifício. O porteiro por um instante estranhou ele ali justamente quando ela não estava mas sabia que ele vinha às vezes quando ela não estava.

Subiu o elevador e, ao chegar no andar, notou a única porta com tapete. Aquele tapete que não queria ser usado como capacho. Na caixa da mangueira de incêndio a chave ainda estava lá. Coberta por uma fina camada de poeira tamanho a falta de uso ou de alguem pega-la nas mãos. Destrancou a porta e tudo estava praticamente igual. O sofá estava mais para o lado e a TV mais para o canto. Pensou em escrever uma carta... não. Chega de cartas. Merda. Estava conflitante consigo mesmo.

Acabou escrevendo uma pequena carta e a deixou sobre a mesa. Deixou o chaveiro da chave que havia usado sobre a carta, o lápis que havia escrito junto. Olhou em volta. Suspirou dando uma olhada rápida na foto dela que lhe encarava. Ele não tinha reação ao vê-la. Se levantou e deixou o papel ali. Ao sair evitou pisar no tapete afim de não suja-lo com seu calçado sujo. Trancou a porta e suspirou novamente. Da mochila tirou uma pequena caixa, dessas de aliança. Desceu colocando a chave dentro dela. Ao passar pelo hall deixou com o porteiro a caixa e disse à ele que entregasse nas mãos dela. Feito isso voltou à padaria. Comprou uma coca-cola em garrafa e seis pães. Sua janta estava pronta. Subiu na motocicleta se despedindo mentalmente dali. Ganhou a estrada, o ar limpo fez seus pulmões respirarem aliviados, um certo alivio pelo ar poluído da cidade. A estrada era pra onde apontava o guidão. Sem rumo, sem destino e sem pressa alguma em chegar ao futuro.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Réquiem

Depois daquela carta tudo pareceu se aquietar dentro dele. Era o Tempo se fazendo presente. Nem mesmo depois de um final de semana de sorrisos com a prima que não morava longe, agora, quando o termometro estacionava na casa dos oito graus a casa parecia fria. Por mais cobertores que colocasse sobre a cama o frio não dissipava. Algumas mensagens de texto na quarta-feira de futebol na TV foram, talvez, a pá de cal que tudo aquilo precisava. Não houve o adeus antes, não havia o adeus agora e não haveria o adeus nunca. Embora sempre tivesse ouvido o cliche de "nunca diga nunca" achava ele ridiculo ao ponto de, se encontrasse o autor dessa frase, diria algumas boas verdades a ele.

Era fim de tarde. O sol se afastava para o Japão. A chaleira anunciava a água quente. Uma blusa velha por cima dos ombros, calça de moletom - dessas mais surradas - e, claro, chinelos de dedo com o adendo de meias nos pés. Preparou o mate. Nunca entendeu o motivo para as pessoas dessa região gostarem tanto disso, pensava assim até vir morar ali e ter contato com isso. Agora bebia aquilo nos finais de tarde. Às vezes acompanhado da prima, às vezes acompanhado de algum colega do trabalho, às vezes acompanhado del... não. Com ela nunca havia apreciado o bom amargo.

Preparou a erva na cuia, a água na garrafa termica, quando se preparava para se sentar frente à máquina para tocar algum velho projeto viu aquela caixa na garagem. Ainda haviam várias caixas para desfazer e algumas que nunca seriam desfeitas pela falta de espaço na casa. Abriu uma das abas: seus velhos discos de vinil e uma vitrola dessas mais recentes, que tinham saída RCA e podiam ir como auxiliar em aparelhos de som novos. O home theater ganhou uma compania na sala, a velha vitrola gradiente que ainda funcionava. Resolveu ver na caixa os discos.

Legião Urbana, RPM, Roberto Carlos, Black Sabbat... haviam vários discos variados. Junção das coleções dos discos de seu pai, de sua mãe e os que havia comprado em sebos. Engenheiros do Hawaii haviam vários. Olhou um, outro, resolveu por um na vitrola afim de ver se o som dela ainda era bom. Passou um pequeno pedaço de algodão na agulha. Tirou o pó da tampa. Perfeito. Aquele ranger baixo dos pequenos grãos de poeira arrastados pela agulha amplificando cada canal microscópico do velho vinil. Lembrava-se que tinha quase todas essas músicas em CDs, MP3, alguns até em DVD. Mas o som não se comparava ao vinil.

Havia algo na voz daquele cara, Gessinger era o nome, alguma coisa nas letras tão dele. No íntimo ele sabia que aquele compositor havia composto para ele proprio. Se sentou no sofá, casa escura a cuia na mão bebericando lentamente o mate amargo. Checou o celular. Não haviam mais compromissos, não havia mais uma agenda. Pensou em ligar... não. Foi quando a água na garrafa termica estava se acabando que o vinil apontou outra faixa. Aquela que finalizava o lado A do disco. O coração dele parou ouvindo. Ao terminar a casa manteve as notas finais ecoando pela casa por mais dois ou três segundos misturado ao som da agulha rodando até o fim do vinil e batendo no ponto final dando um suave clique, até que tudo silenciou.

sábado, 10 de agosto de 2013

Lua Cheia

Os últimos dias tinham sido introspectivos demais. Perdido em devaneios ele mal se alimentava, apenas reagia aos estimulos. Foi quando, em meio a algumas caixas ainda não desmontadas desde a época da mudança encontrou algo que havia ganhado de seu pai, que havia ganhado do pai dele, que havia trazido junto de si de quando veio da distante Ucrânia: uma gaita de boca. Estava em uma pequena caixa, dessas de doce, pequena, mas grande o suficiente para caber a tal gaita envolta em papel de seda.

Resolveu limpa-la e tentar tocar alguma música. Tentou sem sucesso. Seguiu para a laje - fonte eterna de suas inspirações -, onde, sim, relembrou uma ou outra canção. Algumas notas, alguns refrões. Foi quando ouviu o portão abrindo e passos. Quem seria? Se esticou crente de que era ela. O sorriso largo se instalou nos lábios dele, ela havia vindo lhe ver e ouvirá a gaita e, surpresa por saber que ele sabia tocar algum instrumento, tomou a liberdade de entrar e se aproximar. A cadência dos passos era diferente dos passos dela.

Poucas palavras podem explicar o sorriso dele, de largo e cheio de felicidade, para algo mais fino, esguio, até com certa malícia. O gênero estava certo. A surpresa no rosto da outra pessoa também. Mas não era ela. Era a pianista de noites e noites atrás. Ela trazia no ombro um violão e nas mãos a chave de um carro. A praia. O plano dela era sentar na praia e dedilhar o violão, quem se aproximasse teria espaço para sua canção. A pianista trajava um longo vestido, uma sandália rasteira e uma blusa de alças. Nada sensual. Estava mais para despojada do que para sedução. Ele pensou um instante. Aceitou o convite. Ficar em casa sozinho seria pior, emburrecer em frente a programação televisiva de sábado a noite era um péssimo plano.

Seguiram para um canto mais afastado, onde a iluminação até chegava, mas não era tão forte. Lá podia se ver as estrelas com uma plenitude absoluta. Talvez apenas em desertos ou nos polos que se veem mais estrelas que ali. Do porta-malas do carro a pianista tirou esteira, uma bolsa e o violão. Ele se prontificou em carregar as coisas mais pesadas. Logo mais algumas pessoas se aproximaram, alguns turistas que ousavam passear em regiões litoraneas em pleno inverno. Embora inverno apenas no calendário, pois o clime estava ameno.

Foi quando ele, em meio ao dedilhar dela ao cantar que a chuva traga alivio imediato, ouviu seu celular. Era ela. O sinal do celular na praia era horrivel e, ao atender, pedindo um segundo e se afastando do grupo que cantava em um coro de fazer inveja a muitos corais, a ligação caiu. Checou as mensagens, haviam duas. A primeira anunciando a chegada dela, enviada da estrada. E a outra, enviada da porta da casa, que ela viu toda trancada ao chegar. Ele se afastou um pouco ligando para ela. Falaram poucos minutos. Ele a convidou para vir à praia encontra-lo, não mencionou a pianista. Ela recusou o convite, disse que só tinha vindo de passagem. Dez minutos, ele pediu. Discutiram brevemente e ela cedeu. Ele tomou um ônibus e chegou antes dos dez minutos se findarem. No caminho a pianista havia mandado inumeras mensagens perguntando onde ele havia se enfiado. Ele ignorou e apagou todas.

Sentia-se culpado pelo que havia acontecido. Será que ela sabia? Pergunta idiota. Claro que ela sabia. Ele sabia que ela tinha vindo se certificar de que aquilo que sentiu no coração era fato. Ele não tinha palavras. Era um deslise. Ele não podia ter feito aquilo. Nas duas centenas de metros que separavam o ponto de ônibus da casa dele, pensou bilhões de coisas pra dizer. Sabia que ela pensou o mesmo bilhão de coisas para dizer. Ele imaginava que ela teria uma terceira guerra mundial pronta à começar diante do que ele tinha feito. Na manhã seguinte do ocorrido ele tinha ido com a pianista para buscar o piano eletrico dela e receber pela noite. Ouviu de uma moça, morena, que havia gasto uma quantia consideravel em bebidas caras. As peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar. Merda, foi o quê proferiu três ou quatro vezes.

Ao vê-la, ali encostada na lateral fria do carro, braços cruzados, cenho franzido, careta de emburrada ele sabia que era sério. Ao vê-lo entrar na rua ela tirou do bolso o celular. Checou a hora. Ele abaixou o olhar. Ela estava puta da cara e o culpado era ele, apenas ele. Assim que ele se aproximou fez menção em falar. Ela pediu que ele se calasse. O coração dele parou. O ar parou. O tempo parou. Apenas o olhar se moveu vendo a mão dela lhe desferir um tapa no rosto dele. Logo em seguida, antes que ele pudesse expressar qualquer outro sentimento ela o puxou para si pela gola da camisa. Foi então que um beijo se fez e a lua cheia, grande e gorda brotou no horizonte.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Refrão de Bolero

Os dias depois daquele último beijo os dias tinham sido terriveis. Eles nunca haviam terminado propriamente dito. Não teve aquela briga violenta onde pratos voam, roupas são jogadas pela janela. Apenas foram rareando os encontros. Ele, por motivos alheios à sua vontade tinha se mudado para outra cidade. A casa era menor, porém o clima era mais ameno e havia uma laje de onde se podiam olhar as nuvens - A forma secreta que conversavam - e as estrelas. O acontecido era semelhante à uma fogueira que não se alimenta: aos poucos ela vai rareando, ficando menor até se apagar completamente. O quê outrora era luz e calor. Hoje eram trevas e frio. Frio.

Naquela noite não queria ficar no frio e na escuridão da casa. Suspirou caminhando até o portão o trancando. A motocicleta na garagem. Algumas caixas ainda residiam ali por pura falta de onde colocar tudo. Ao menos estava protegido da chuva. Algumas revistas e coisas que não tinham tanta importância ou necessidade de estarem guardadas em um local mais específico. Um carro passou lento, vidros abertos rumando para aquele bar. Não queria pensar, seguiu a rimar, foi ao bar. O lugar parecia aquecido. Entrou e se sentou em uma mesa ao fundo. No pequeno palco havia um teclado, um microfone e uma banqueta. Pediu um vinho barato, daqueles que esquentam. Doces demais.

A luz diminuiu gradativamente e uma voz grave anunciou a atração. Uma pianista. Olhou rapidamente em volta, muitas pessoas bem vestidas, roupas caracteristicas de uma época mais antiga. E ele de calça comum, camisa comum. Claro, haviam pessoas vestidas com trajes atuais. Mas um grupo que estava proximo do palco estava com trajes dos anos cinquenta. Assim que a moça entrou - trajando um belo vestido de noite, desses que ninguem compra, apenas aluga - saudou os presentes e se sentou ao piano. Na terceira música ele já estava embriagado, não só pelo vinho pobre, mas pela música, pela voz da jovem, que, dificilmente, teria mais de vinte e dois anos. Embora a maquiagem tentasse, em vão, dizer que ela era mais velha.

Ao fim da apresentação ele a chamou para dar os parabéns por tal performace. Ela, visivelmente envaidecida, agradeceu. A refeição fizeram ali. Beberam outro vinho, mais encorpado, mais caro inclusive. Estavam conversando quando um amigo a chamou. Ele sorriu ciente de que sua compania iria embora. Roeu o canto da unha do dedo minimo, puro vício. Enquanto se distraiu com a propria mania ela voltou. Cantarolou "frágeis testemunhas de um crime sem perdão" e se sentou novamente à mesa com ele. Retomaram a conversa. Ela tinha fala fácil, conversava, contava histórias como se fosse uma cigana dessas que leem mãos pela rua.

Conversaram até tarde da noite. Foi quando veio a proposta, a principio inocente, motivada pelo bar que iria fechar: continuar a conversa em outro lugar. Ela morava em um bairro distante. Ele morava a poucas quadras. A escolha foi um tanto quanto óbvia. Passaram a noite juntos. Cantarolaram diversas músicas. Contaram cada qual sua história, suas feridas, suas dores, suas alegrias e amores. Acabaram atraídos um pelos lábios dos outros. Havia uma dor muito grande nela que ele não havia conseguido chegar. Ao vê-la sair da cama e procurar pela bolsa ela pediu um local para fumar. Péssimo hábito. Triste sina. Ele indicou a laje enquanto iria preparar o café. Enquanto preparava o café se perdeu no pensamento, apesar dos amigos, ela parecia tão sozinha, parecia que era a personificação da solidão dele. Quando ela voltou tomaram café, combinaram de se ver novamente mais tarde. Ele, antes de sair para o trabalho, checou o celular. Nada. Nenhuma mensagem. Jogou o aparelho no bolso e saiu, sem ideal nem esperança.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Último Beijo

Eu ainda conhecia o endereço de cor e salteado. Podia ir de olhos fechados que não me perderia. Mesmo que a chuva tirasse a percepção e deixasse o clima mais frio eu ainda sabia exatamente o lugar de tudo naqueles quarteirões. Antes de seguir até lá resolvi ver meu antigo endereço. A casa tinha uma luz acesa na frente, o jardim estava bem cuidado... provavelmente uma familia estava morando ali. Reslvi não bater nem me fazer apresentar. Tem coisas que melhor deixar como estão. Sendo assim segui o rumo.

Aquelas ruas eram iguais ao que eu me lembrava. Também pudera, não faziam nem seis meses que eu havia estado aqui pela última vez. Que tinha tomado um chocolate quente e... também chovia. Curioso. Quase as mesmas condições climáticas - hoje estava, absurdamente, mais frio -, e a padaria - que estava fechada -, constrastavam no ambiente comparativo daquela outra vez. Olhei pra cima e o prédio impunha respeito. Oito. Oitenta e quatro. Puxei a gola do sobretudo e segui em frente. Precisava fazer isso de uma vez por todas.

Assim que adentrei no hall de entrada o porteiro me olhou, sorriu já dizendo que ela não estava em casa e... disse que só precisava fazer uma coisa e já saíria. O elevador já estava funcionando, mas fiquei de costas para o grande espelho que continha no aparelho. O frio fazia minhas feições ficarem avermelhadas. Meus olhos ficavam mais lacrimejantes... eu não nasci pra essa região do mundo. Tinha de trabalhar pra me mudar pra qualquer lugar acima dos tropicos, quanto mais perto da Linha do Equador melhor. E de frente para o mar, como naquele antigo sonho que tivemos.

Oitavo andar. Aqui estamos. Respirei fundo e saí. As chaves seguiam no mesmo lugar. Escondidas dentro da caixa onde ficava a mangueira de incêndio. Destranquei a porta olhando o tapete, não era mais aquele de borboletas. Era um outro, simples, desses que se compra em lojas de preço único. Lamentavel, sorri de canto entrando. O apartamento tinha um ar gelado, porém, apesar disso, ainda muito acolhedor, rico em lembranças. Caminhei no escuro como se fosse morador dali. Ao chegar na geladeira tudo arrumado, a lavanderia explicou o tapete simples: o de borboletas estava secando próximo da maquina de lavar. O apalpei... ainda estava úmido. Deixei-o ali, repousando tranquilo.

O quarto estava arrumado, o armário tinha menos roupas que o habitual. As malas não estavam em cima do armário, eu sabia que ela tinha viajado, por isso estava aqui. Tinha de vir uma última vez. Última. Quando essa palavra ocorreu por minha mente uma lágrima ousou brotar no canto de meus olhos. Respirei fundo. Tinha de ser forte o suficiente e continuar isso. Seguir adiante. Porta a fora e seguir o rumo. Assim era a vida. Antes algo me chamou a atenção, um reflexo de luz se fez jogando um pequeno feixe de luz em algo brilhante. Um porta-retratos. Desses com armação de aço inox. Sem muito luxo.

Eu conhecia aquele sorriso na foto. Aquele sorriso gostoso que ela tinha quando estava feliz. Quanto estava satisfeita. Quando cozinhava algo que dava certo. Quando conseguia me surpreender, quando me levava às lágrimas ela sorria daquela forma. O sorriso triunfante. Porém, o sorriso ao lado dela, que por muito era meu. Já não era mais. Dei um beijo suave sobre o vidro, na testa dela. O porta-retratos voltou ao lugar de origem. Saiu entrando no elevador. Se deixou olhar no espelho. Aquele último beijo tinha mesmo um gosto estranho, naquele último beijo um sabor de despedida.

domingo, 14 de julho de 2013

Chuva II

Era uma terça-feira. Antony, ou melhor Tony, como gostava de ser chamado as odiava. Sempre o dia mais parado da semana. Os crimes do final de semana já foram solucionados, os da quarta-feira de esportes na TV ainda seriam cometidos. Deu uma última tragada no cigarro o jogando o restante - menos da metade - pela janela três andares abaixo. Brandiu algum xingamento por seu escritório estar tão próximo do chão. Os fios de eletricidade, os caminhões que passavam pela rua tapavam sua visão. Seu telefone tocou, não, não era o telefone, era interfone. "Fala" apertou o botão já desgastado pelos anos de uso interpelando sua secretária, do outro lado da parede. O comissário de policia veio ao seu encontro. Enquanto ele entrava com um charuto fedorento entre os dedos. Por um segundo Tony pensou se havia pago aquelas multas todas... até onde se lembrava, não tinha. Sem a menor cerimonia o comissário se sentou reclamando das cadeiras. Vou ser direto Tony, brandiu ele com uma coluna de fumaça saindo junto da voz, Jack está vivo e fugiu do hospital. Jack.

O famoso assassino que levou um tiro de calibre doze no corredor de seu apartamento naquele dia de chuva. Tony sabia quem havia atirado nele. Sabia porque havia sido ele. Jack sempre foi muito esperto em esconder seus traços, seus assassinatos eram brutais. O comissário sabia que era ele na maioria dos casos, mas nunca havia nenhuma prova. Um único detetive particular, Tony, havia descoberto o rastro e, quando estava próximo de solucionar o caso, Jack matou sua esposa. O golpe foi baixo demais. Agora era pessoal, esse foi o motivo principal que levou Tony ao apartamento de Jack aquele dia. Que fez Tony descarregar os dois canos da espingarda calibre doze no peito de Jack. Por achar ter feito tudo certo saiu. Mas, pelo visto não. Puxou outro cigarro do maço e o acendeu quase sem fazer movimentos desncessários. O comissário sabia que havia sido Tony a ter feito o disparo, por isso não soltou a noticia para a imprensa. Não tinha provas, mas sabia que era pessoal.

Então, continuou o comissário batendo a cinza no cinzeiro já cheio, o quê vai fazer? O quê acha? Vou terminar o que comecei, respondeu Tony esmagando o restante do cigarro no cinzeiro. Tinha de parar com isso. O cigarro o mataria antes de Jack. Tony abriu a gaveta e de lá saiu uma pistola nome milimetros. Ele checou o pente se estava carregado. Estava. Engatilhou a arma e colocou às costas cobrindo com a blusa. Tem um problema, aquele homem corpulento, sentado à frente da mesa continuou, ele está fugindo com uma garota, filha do prefeito, não que eu goste do prefeito, mas... Tony entendeu a indireta. Não ligava. Mataria quem quer que fosse para lavar sua honra. Sabia que isso não adiantaria merda nenhuma, mas não ligava. Queria mais era vingança, vendetta. Quando pensou na moça pensou de mata-la primeiro, de modo a fazer Jack sentir o golpe. Mas ele era frio o suficiente pra pegar essa hesitação de Tony e acabar com ele.

Mais algumas frases foram ditas, a policia sabia onde Jack estava indo. Eles dariam algumas horas de vantagem para Tony. O comissário sabia como era isso de vendetta, afinal ele também tinha descendência italiana, sabia como a máfia agia e respeitava esse tipo de coisa, mesmo achando errado. Dito o que tinha de dizer ambos saíram. Na rua cada qual entrou em seu carro. Tony ia naquele velho Mustang Fastback dos anos 60, azul escuro que havia achado por uma pechincha. O comissário em seu taurus, um carro de policia descaracterizado, mas que trazia no porta-luvas o giroflex vermelho, semelhante àqueles de seriados americanos dos anos oitenta. Com o endereço em mãos Tony seguiu pelas ruas certo de seu plano. E depois? Depois não importa. O quê importa é o agora. Na frente da velha fundição havia um carro, uma Chevy Suburan. Pela cor - verde escuro - ele deduziu ser da moça que estava com Jack. Tirou a pistola da cintura. Checou as balas uma última vez. Puxou o para-sol, a foto de sua mulher sorrindo lhe abençou. Tinha mais fé nas pessoas que nos santos, até mesmo mais fé que em Deus, isso se, claro, ele existisse mesmo. Se benzeu e saiu do carro.

Ao entrar no prédio sentiu o ar pesado. Sabia que aquele seria o último de seus casos, depois pretendia se aposentar e, quem sabe, escrever um livro com suas investigações. Quem sabe pudesse, assim, ter alguma paz dentro de si. Estava ficando velho, beirava os cinquenta anos já, não convinha esse tipo de ação para alguem tão velho. Caso ainda estivesse na policia certamente já estaria em funções administrativas, preso à uma mesa de escritório esperando a data da aposentadoria chegar. Avistou Jack. Jack avistou Tony. Um apontou a arma para o outro. Trocaram nem meia duzia de palavras. Tony atirou ao fim de suas palavras. O disparo de jack saiu torto, os meses no hospital o fizeram perder a precisão no tiro. Vendetta cumprida. Logo após o quê se ouviu foi outro tiro. Michele, a filha do prefeito, amante de Jack, disparando em Tony. Porém o tiro de Jack havia ricocheteado e achado alguns tonéis de combustivel. Agora a velha fábrica ganhava luzes produzidas pelas chamas que tomavam o lugar. A vingança de Tony foi cumprida. O sonho de Jack de ter sua vingança também. A Michele coube apenas fugir do incendio. Quando a policia chegou ela disse que os dois lutaram bravamente e um atirou no outro. Ela, filha de um siciliano, neta de um mafioso conhecido, tinha garantido a honra dos dois, e da dela. Honra lavada com sangue é honra mantida. O quê ambos nunca souberam era sua origem: ambos de famílias opostas, ambas da pequena ilha ao sul da Itália. Ambos mantendo a tradição que nunca nem ao menos souberam existir. E ambos mantendo a balança em equlibrio.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Miragem do deserto

Saiu do bar, mais uma vez tinha recorrido àquela mistura alucinante e enebriante de tequila e whisky. Não ligava se as duas bebidas não combinavam. Era a sua bebida, era o que havia bebido em todos os bares ao longo dessa estrada, dessa rodovia que a muito não via um grande trânsito de veículos intenso. O deserto só não tomava conta dela completamente porque vez por outra passava algum motociclista que, assim como ele, buscava algo. Algo que nunca saberia ao cereto o quê era ou onde estava. A cada parada um bar. E a cada bar a mesma bebida que causava estranheza em barmans até experientes que já diziam ter visto de tudo.

A cada parada cidade uma nova jovem caía em seus encantos. Aprendia a gostar de uma nova bebida e acabava lhe dava algo precioso, que nem mesmo ela tinha consciência da importancia que tinha. Ele, porém, tinha total consciência do que estava fazendo e, apesar do tempo que já fazia isso, sempre sorria ao ver que mais uma havia caído em suas presas, que mais uma havia caído em seus encantos. Se entregavam a uma noite completa, daquelas de fazer as paredes dos pequenos - e nem sempre bem cuidados - motéis de beira de estrada tremerem ante a fúria de ambos. Adormeciam com os desejos da bela em ir embora com o estranho, como se ele fosse seu salvador de uma vida pacata e entediante naquela pequena cidade de beira de estrada.

Quando a moça, completamente extasiada e satisfeita da noite que havia tido com um completo estranho acordava, muitas vezes na tarde do dia seguinte, não o via. Procurava no banheiro. Quando a hospedagem dispunha de tal aparato interfonava à recepção. O procurava pelo corredor até chegar ao fim dele, de fronte para a saída, quase sempre trajando roupas menores. Muitas vezes o proprio lençol da cama fazia-se de vestes à elas. Quando estavam diante do estranho ele já não as podia ouvir mais. Agora elas apenas podiam ouvir o ronco da motocicleta arrancar e desaparecer naquela reta infinita, desaparecendo aos poucos, como uma miragem no deserto.

sábado, 1 de junho de 2013

chuva

Seguia com a faca nas mãos, apesar do corpo ao seu pé já estar completamente sem vida. Olhou as mãos. Sangue. Muito sangue. Não pensou em absolutamente nada além do quão havia descido. Podia tentar limpar as mãos, mas o máximo que conseguiria era tirar o sangue da superficie da mão. Não poderia tirar da memória os nuances da briga. Da batalha que fez para manter a sua vida como sempre esteve. O beco ocultaria o corpo por algumas horas. Com sorte dias.

Do céu pendia uma fina garoa que poderia, facilmente, lavar as evidências mais grosseiras. Com mais sorte a chuva se tornaria uma tempestade e levaria toda e qualquer evidência. Em um bar desses com mesa de bilhar no meio, balcão onde homens disputavam as poucas putas que lá trabalhavam e algumas mesas mais reservadas em um dos cantos viu a oportunidade. Um banheiro. Lavou as mãos o máximo que pode. E o quê faria com a faca dentro da blusa? Não haviam rios próximos. Limpou o cabo da mesma e seguiu na direção dos sanitários. Depois de uma bela mijada olhou em volta. Na cabine ao lado havia outro homem. Mais uma vitma? Não. Não hoje.

Se deu conta ao ouvir a descarga vindo do seu companheiro de banheiro que haviam caixas d´água. Dessas pequenas que não são mais tão comuns. A sorte começava a sorrir diferente. Com um sorriso lascivo, ácido. Limpou o cabo e deixou a faca ali dentro. Deu a descarga e ficou alguns instantes vendo o adoravel jato que enchia a caixa novamente praticamente lavar a faca. Ótimo.

Voltou ao bar. Alguem havia ligado a jukebox que não tinha sido percebida. Um espaço no balcão e já pediu um cowboy. E outro. E mais um. Pagou. Na saída, no exato instante que recebeu o troco da bebida calculou que não seria nada mal pedir mais uma dose e colocar alguma música para quem estivesse por perto ouvir. Muitas músicas novas. Era uma jukebox com aparência antiga, mas uma tela de toque. Modernidade interessante. Pediu mais uma dose. Escolheu uma música que combinou com seu estado atual. Arrumou a gola do sobretudo. Virou a última dose. Agradeceu e saiu.

A chuva havia ganhado corpo. Agora estava forte o suficiente para lavar as evidências. O sorriso da sorte se alargou nesse instante. Da aba do chapéu se esquivava dos grossos pingos de chuva. Passou em frente ao beco. Seguia escuro, frio e melancolico. Igual havia deixado minutos atrás. As mãos no bolso davam a segurança que precisava manter daqui em diante. Não poderia se deixar levar pelos pensamentos de que havia matado novamente. Suspirou movendo os ombros para cima. Quanto ainda tinha no bolso? O suficiente.

Chamou um taxi na esquina seguinte. A última viagem da noite, disse o taxista. Endereço dado, minutos até o veículo amarelo com uma faixa azulada estacionar diante do pequeno prédio de fachada gasta pelos anos de negligência na manutenção. Sorriu dando uma pequena olhada para cima. Praticamente todas as luzes apagadas. Pagou o taxista e o aguardou virar a esquina. Adentrou no velho edifício. Subiu as escadas com os sapatos de um couro rangendo a cada passo e tentando expulsar a absurda quantidade de água que havia acumulado durante o seu passeio. Sétimo andar. Essa era uma das poucas coisas que odiava aqui: não havia um elevador. Muito embora em uma edificação com esta idade natural que não existisse mesmo. Caminhou pelo corredor vasculhando os bolsos atrás das chaves. Destrancou a porta. Antes do primeiro passo sentiu o solavanco lhe empurrando para trás. Viu as luzes automáticas do corredor - única tecnologia mais atual instalada por aqui - se apagarem para, logo em seguida, se acenderem novamente. Passos cadênciados. Sapato social. Estava no chão quando viu de relance, descendo as escadas com uma carabina num dos ombros e uma maçã na mão oposta ao ombro. A luz se apagou no instante em que uma das portas dos apartamentos vizinhos ao seu se abriu. De lá vinha a mesma música que havia ligado no bar. E a voz na canção era a mesma que ecoou nos seus instantes finais. God is dead? God is dead?

sexta-feira, 24 de maio de 2013

musica na janela

Ela sentada à janela do apartamento de seus pais, oitavo andar. Tinha feito todo o dever de casa que a escola insistia em mandar, porém os planos de sair tinham sido frustrados pela noite, que chegou antes do que ela planejou. Olhou o violão em cima do guarda-roupas. Será que ainda saberia tocar? Tanto tempo que não dedilhava... se sentou a beirada da janela - assim o eventual som se perderia janela afora evitando transtornos com os vizinhos - e começou a dedilhar. Ainda se lembrava das posições de cada dedo. Tentou lembrar alguma música de cabeça. Só lembrava o começo de wish were here, do pink floyd. Não por ser fácil, mas por ter ensaiado muito ela pra tocar pra uma pessoa que acabou indo embora.

Dedilhou evitando olhar pro violão. Em7, G, Em7, G, Em7, G, Em7, G, Em7, G. Arriscou a primeira parte: "So, so you think you can tell, Heaven from Hell, Blue skies from pain, Can you tell a green field, From a cold steel rail? A smile from a veil? Do you think you can tell?..." Sorriu de canto, ainda lembrava de boa parte da letra. Mas parou de tocar de súbito. Torceu um pouco o nariz. Errou duas notas. Teve certeza disso. Suspirou olhando o prédio em frente. Um rapaz estava a janela lhe assistindo tocar. Sentiu o rosto queimar por completo. Lá embaixo a avenida movimentada não deixava que trocassem a menor palavra, mesmo gritando. Porém ela estava envergonhada. Pois tinha trancado a porta do quarto para que ninguem a visse tocar e agora um completo estranho a via tocar?

Saiu da janela e guardou o violão. Se deitou pensando na possibilidade de alguem lhe ouvir tocar, uma especie de admirador. Mesmo errando as notas. Ponderou dele nem ter ouvido-a tocar e só ficou olhando ela, a pouca beleza que ela julgava ter. Foi se aquietando, sorriu de canto com esse pensamento e acabou adormecendo.

O dia seguinte passou voando. Tudo que ela queria era voltar à janela e tocar para o estranho. Por mais que esse pensamento a assustasse um pouco ainda estava na segurança da sua casa. Os dias foram se seguindo, um após o outro, ela treinando novas melodias e o espectador calado apenas sorria postado frente à janela a vendo tocar. De quando em quando ela errava uma nota em uma música que já havia tocado perfeitamente afim de ver a reação dele. E, dia após dia foi se deixando encantar pelo espectador. Porém - sempre há um porém - ela foi se interessando pela aventura. Então um dia, um sábado ensolarado, atravessou a rua munida do violão e da coragem. Chegaria na portaria e diria o quê? "o rapaz daquela janela ali...?" isso. A ideia era meio idiota mas poderia funcionar.

Entrou no prédio, explicou a história pro porteiro. Ele, educadamente, ouviu atento e ambos foram para a rua. Ela indicou a janela e viu o porteiro fazer uma cara um pouco torta. Será que o rapaz não estava em casa? Estava. Ela perguntou se poderia ir vê-lo. O porteiro analisou ela de cima a baixo. calça jeans, uma blusa de mangas curtas, cabelo solto, tênis all star no pé. No ombro o violão dentro da bolsa, na mão diversas revistas e partituras.

Com o coração na mão ela entrou no elevador. Apartamento 800. Oitocentos. Suspirou caminhando decidida até a porta. Fez um pequeno sinal da cruz se benzendo. Tocou a campainha. "Só um minuto" disse a voz lá de dentro. E se ele fosse casado? Burra. Estava arriscando muito em vir ali. Pensou em dar meia volta e sair, aproveitar que o elevador ainda estava no seu andar. "Quem é?" perguntou a voz que ela julgou ser dele. Como ela deveria se apresentar? Seu nome? Não... teve uma ideia, um lampejo rápido. "A moça do violão, do prédio em frente...". A porta se destrancou imediatamente. Ele sorriu. Ela sorriu. "Entre, sente-se" ele disse. Ela agradeceu e entrou, dando uma rapida olhada em tudo, nada que denunciasse que ele era casado ou algo do tipo. Menos mal. Ela se sentou na beirada de um sofá grande, desses de três lugares. Ele se aproximou. Ela notou que ele caminhava com os braços um pouco afastados do corpo. Como se tateasse as coisas. Até que enfim ele se sentou na outra ponta. Distante não mais que alguns metros dela. "Posso?" ele disse esticando as mãos à ela. "Tocar?" ela indagou-lhe. "Sim, tocar seu rosto..." foi só então que ela notou que ele era cego. E assim estão até hoje. Ele senta-se a não mais que alguns metros dela e ela toca músicas para alegrar os dias dele, que agora não são mais escuros. Tem a luz da voz, da música dela.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Joia de Pedra

Ele me perguntou até quando eu iria continuar brincando de ser agente secreto com a CIA. Confesso - apenas pra mim mesma, por puro orgulho - que fiquei desconcertada com a pergunta. Tentada a responder com um palavrão, quem sabe um ataque. Mas não consegui puxar forças de dentro de mim para tal feito. Apenas permaneci estática, sentindo o peso, o comprimento e o significado de cada palavra. Devo confessar que a proposta dele me tentava. E muito. Mas não podia aceita-la, não agora. Ainda queria provar algo à mim mesma. Algo que eu não tinha a menor ideia do que pudesse ser. Não o respondi. Ele deu um leve toque sobre a mesa, olhou de relance a conta que o garçon havia trazido - não mais de vinte libras - e jogou uma nota de cinquenta. Não ousei tocar aquela nota. Apesar do meu instinto de ladra ainda estar muito ativo eu ignorei a nota.

O segui com o olhar até a porta. Tinha quebrado a escuta, desligado o celular. Será que a CIA ainda confiaria em mim? Aliás, aposto que eles nunca confiaram em mim, apenas a Sydney confia em mim e por isso que eu não estou presa em algum lugar. Me levantei não mais que um minuto após a saída dele. Ao chegar a rua não o vi em lado nenhum, não haviam carros pela rua - também pudera, mais de quatro horas da manhã - e a iluminação da rua era sofrivel ao ponto de não conseguir ver mais do que três quarteirões pra cada lado. Apenas se ele fosse atleta ou tivesse um carro a sua espera ele saíria tão facilmente dali. Ponderei tantas opções que me esqueci de religar o - maldito - celular. Muitas mensagens e ligações perdidas, todas de Sydney. Qual seria o nível de fúria dela comigo agora? Podia apostar que muito alto.

sábado, 27 de abril de 2013

Khronos

Não disseram o tão temido "adeus" - ambos odiavam aquela palavra -, não houve uma grande briga que culminou no instante de agora. Ele sentado na laje diante das estrelas, vendo aquela Lua completa, cheia. Ela, provavelmente sentada na cama, mesmo com a poluição luminosa podia ver algumas estrelas pontilhando o céu e a lua brotando entre dois prédios ao longe. Entre os dedos aquela pequena luz alaranjada. Ele, milhas distante, torceu o nariz praquela "coisa". Ela sorriu de canto e arremessou a bituca oito andares abaixo, ele sorriu imaginando aquela ponta, ainda fagulhante, batendo ao chão e sendo atropelada, esmagada e, finalmente, varrida por algum gari.

Tinham na lua o seu telefone, o seu email, o seu skype particular. Diziam ter pago uma fortuna pra instalar uma linha privativa do coração dele até a lua e dali pro coração dela. Não havia atraso na mensagem. Era instantaneo. Podia chover, podia cair asteroíde, podia explodir mil bombas, que a conexão deles nunca caía. Porém (sempre ele) nos últimos tempos, por falta de tempo, a linha vivia muda. Ainda ouviam ecos, distantes, se ligassem na operadora desse sistema incrivelmente mirabolante eles diriam estar tudo na perfeita normalidade. Mas então... o quê estava ocorrendo? A voz dela se perdia. A voz dele se perdia. Os ecos iam sumindo, sumindo, sumindo até quase desaparecerem por completo.

Restavam as mensagens gravadas, as fotos, as lembranças. Cada estrela gravava um momento que era possivel acessar sempre que fosse preciso. Mesmo com o céu repleto de nuvens ainda algumas estrelas ousavam romper a camada de nuvens e trazer uma mensagem gravada. Aquela que fazia brotar no rosto de ambos um fino sorriso. Um olhar de canto no maldito "tic-tac". Era hora de se recolher. Amanha o tempo seria contado. Khronos, saiu vitorioso, pelo menos por enquanto. Pelo menos até que se ache uma pedra grande o suficiente para faze-lo engolir.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Ponto

Não andava bem, e não era apenas pelo pé arranhado, o calcanhar partido. Era algo maior, algo interno... não, algo interno também não cabia pro que sentia. Maior, maior, infinitamente maior que o que podia carregar dentro de si - e olha que podia carregar muita coisa dentro do peito! - ou nas mãos. Algo externo a envolvia, lhe cobria dos pés a cabeça. Meditação foi a sugestão que deram. Sentar na clássica posição de lótus, respirar suavemente, acender um incenso de alguma fragrância levemente adocicada e apreciar o silêncio. Algo relativamente impossivel com o trafego de aviões constante. Só tarde da noite teria a quietude para - tentar - meditar. Ainda que não acreditasse em meditação tinha de tentar algo.

Se fosse alguns anos atrás já teria abandonado todos os controles e voltado àqueles pensamentos de forma mais intensa. Teria voltado ao frio do metal. Ao frio do mar. Ao vento do parapeito no terraço do prédio. Agora tinha controle sobre esses pensamentos. Agora podia se concentrar sempre que viesse uma onda saudosista por aqueles pensamentos, por aquelas atitudes. Respirava fundo e pronto. Tomava um colorido e pronto. Tomava um porre e pronto. Sempre dava certo. Sempre até agora.

Respirou fundo até quase perder o folêgo. Tomou coloridos até quase dormir dias seguidos. Tomou porres um em cima do outro. Nada mais fazia efeito. Fechava os olhos, buscava explicação, buscava o ponto chave do que lhe incomodava. Buscava dentro de si o que estava apegado à alma.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Vento Pela Porta

Pela porta entre aberta entrava um frio e esfriava o café na xícara. Não se lembrava de ter deixado a porta aberta. Será que foi ela? Não. As meninas? Não. O vento então? Sim, melhor culpar o vento por enquanto. O vento que a tomou pelas mãos. Disseram que tudo que estava ao seu alcance foi feito. Se mãos humanas não eram possiveis de segura-la, quem seria ele para faze-lo? Ainda assim esticpi as mãos. Ela esticou as dela. A luz atrás dela era forte, a reconhecia pela silhueta, pela displicência com o cabelo, pelo toque suave das mãos macias. Sentiu as mãos dela escorregarem lenta e dolorosamente enquanto ela seguia volitando de costas para aquela luz.

Os olhos, apesar da distancia, seguiam, uns presos aos outros. Os dela, com uma serenidade, com uma tranquilidade que tentava transmitir a ele, que eram o oposto: eram a agitação, com uma instabilidade de quem demonstrava que não conseguiria seguir, não sem ela. Por mais que os olhos dela dissessem que tudo iria ficar bem, que ele conseguiria seguir em frente, ele não conseguia acreditar. Não agora. Não com a ferida aberta, jorrando o líquido vital.

Os anos que se seguiram foram cruciais: a ferida cicatrizou apesar dos pesares. Hoje, quando ele lembrava daquele dia o que lhe invadia o peito não eram mais a agitação, a instabilidade... hoje ele entendia a serenidade que ela queria lhe passar. Agora ele sabia que era capaz. Apesar de ainda não acreditar inteiramente nisso ele sabia que ela estava lá em cima, entre as nuvens, a olha-lo e a cuida-lo. Vez por outra ele ainda se sentava na varanda afim do vento lhe esfriar o café e entre abrir a porta, tudo para ele sorrir de canto e saber que ela estava ali, dentro dele, assim como sempre esteve.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Tempestade

Se encarou no espelho vendo que as olheiras pareciam ter fincado raízes em sua face. As marcas de expressão, as rugas que já se desenhavam na testa diziam, gritavam, que seu tempo já estava passando e não teria muito mais tempo depois desse tempo que passa. Sorria com a certeza inevitavel de que depois desse tempo passado quase nada mais a prenderia ali. Era a forma como se afastaria. Quando o tempo passasse juntaria o pouco que tinha e iria em rumo desconhecido. Talvez andares abaixo, talvez milhas distantes, talvez lugar nenhum. Aqui mesmo. Um clarão entrou pela janela. Um raio. Instintivamente contou os segundos afim de ver onde o raio caía. Nove segundos. Três quilometros. Tinha aprendido isso quando ainda era criança e nunca mais havia esquecido. Suspirou deixando sua "cópia mal-feita" presa ao espelho. Apagou as luzes do banheiro e seguiu pra sacada. Se sentou na exata divisa entre a sala e a pequena varanda do apartamento em que morava. Desejou um chá pra espantar esse friozinho que sempre acompanhava as tempestades. Preferiu ficar ali. Inerte. Sem expressão, tentando não pensar em nada. Mas até pensar em nada é pensar, não é? E o tempo ia se findando. Se firmando. A chuva perdurou algumas horas. Assistiu quase tudo. Quem sabe ao fim dela não tomasse o impulso necessário? Engatinhou até o tapete e se deixou deitar ali. E ali ficou. Adormeceu coberta pelos clarões dos raios e os sons e cheiros que só uma boa tempestade pode causar.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Bolinha de Sabão


Creio que todo mundo deve saber já que agora, minha casa nova, tem uma laje... pois bem, a vista lá de cima é linda, no entanto esses dias estava sem nada pra fazer no fim da tarde e resolvi brincar de bolinha de sabão. Creio que praticamente todo mundo já brincou disso, não? Pegava um copo com água, um tantinho de sabão em pó ou detergente de louça, um canudinho e ia pra algum lugar sentar e fazer bolinhas de sabão durante um tempão.

Ocorre, porém, que durante as bolhas indo ou estourando antes mesmo de sairem do canudinho eu notei algo que correlacionei com a vida: quem ainda lembra sabe que pra fazer as bolinhas precisa fazer uma boa receita, mas isso só não basta! Na hora de soprar as ditas bolinhas é preciso fazê-lo com zelo, se soprar forte demais ela estoura logo que sair do canudinho, se soprar fraco demais ela não sai. Assim é a vida. Se irmos com força demais ela arrebenta, se irmos com calma demais, mal saímos do canudinho... então, apesar de parecer dificil saber dosar a força no começo, enquanto estamos começando com as bolinhas, dali pouco tempo estamos "craques" fazendo a maioria das bolinhas saem e ganham os céus. Continuemos treinando até sabermos quanta força usar com cada situação, pois logo ganharemos os céus!

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Manha de Quinta-Feira

A tomou nos braços naquela quarta-feira. Se sentaram na beirada da cama vendo a Lua brotar no horizonte. Não tomaram ciencia de tempo, de horas, de nada... apenas ficaram naquele momento único, ele com ela, ela com ele. Não estavam tão longe, umas poucas horas de estrada e poderiam se ver, todos os finais de semana era o plano dele, pelo menos até traze-la para cá. A casa lá não era grande, mas caberia ela com toda a certeza. Jantaram juntos, lavaram a louça juntos, caminharam até o corredor onde ele escondeu as chaves novamente. Voltaram para dentro do apartamento rindo. Não soltaram um a mão do outro em nenhum instante. Nem mesmo no banho se soltaram, no caminho de retorno do banho também não... a mão fraquejou apenas no ápice daquele momento mágico, unico.

Adormeceu com ela em seu peito. Ela já dormia serena, podia sentir o coração dela bater tranquilo. Logo ela "escorregou" e se ajeitaram. Ele afrente e ela o abraçando. Conchinha. Dormiram até os primeiros raios trespassarem a cortina o acordando. De canto de olho ele viu o relogio. Tinha compromissos que não podia ignorar. Claro que ela era e sempre seria seu maior compromisso. Mas ainda tinha que ir... não queria acorda-la. Lentamente se esgueirou por debaixo do braço dela saindo. Quando saiu foi até a cozinha tomar um gole de leite gelado. Foi quando viu caneta e papel. Sorriu se sentando, suspirou e se colocou a escrever.

Dobrou o papel lentamente. Deixou a caneta sobre a mesa e caminhou, ainda de pés descalços, até o quarto e deixou a carta no travesseiro onde havia dormido. Se esticou um pouco e deu um beijo suave nos cabelos dela. Todo receoso em acorda-la. Caminhou até a saída trancando tudo. Desceu pelo elevador. O mundo pedia que tivesse pressa, que tivesse sempre aquela maldita pressa que não lhe permitia nem ao menos respirar. Mas isso acabaria logo. Voltou a garagem, vestiu a jaqueta e seguiu até sua nova casa. Deixou a moto e a jaqueta e saiu, tinha muitos afazeres. Passou em frente à uma vitrine e viu seu rosto meio amassado, como se tivesse acabado de acordar, um olheira se postava ao canto do olho direito. Mas notou algo além: estava com um sorriso fino no canto dos lábios. Olhou, ainda pelo reflexo, uma nuvem lhe espiar. Balbuciou antes de seguir seu destino "te amo... mô".

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Quarta-Feira

Haviam conversado a semana toda. Em meio às arrumações sempre que podia largava tudo e ia ao encontro dela, ao carinho, ao colo, ao conforto que só ela lhe dava. Algumas festas de despedida se fizeram, outras pessoas, mais queridas, vieram se despedir pessoalmente. Menos ela. Se encontravam ou em um local "neutro" ou no oitavo andar dela. No fundo compreendia isso. Toda aquela bagunça, aquelas caixas, de uma forma ou outra estragariam as lembranças que compuseram ali. As horas juntos, brigando, se amando, se mimando, se olhando ou apenas parados vendo a chuva cair aos poucos e regar o jardim deles.

O jardim seria cuidado por uma senhora, vizinha e dona do imovel, ela disse, ao ver o jardim, que seria um pecado deixar que se estragasse algo tão belo. Sobretudo com o sentimento pulsante que exalavam daquelas flores e plantas que eram tempeiros. Ficava tranquilo com isso. Claro que já tinha providenciado mudas para todas as plantas, os tempeiros... olhei o relogio preocupado. O caminhão estava quase todo carregado e ela ainda não tinha vindo. Será que era o trânsito? Devia ser. Talvez o elevador tivesse dado defeito a atrasando. Isso.

Tentei segurar o caminhão o máximo que pude. Se fizesse mais atrasaria todo o dia daquele caminhoneiro. Provavelmente ele tinha esposa, filhos pra voltar ao fim do dia... não era justo. Segui com ele sentindo um aperto no peito. No meio do caminho senti um aperto no peito. Tomei o celular nas mãos "0 mensagens novas". Ah sim, ela estava sem crédito... por que o mundo tem que ser tão captalista ao ponto de um casal não poder trocar mensagens livremente? E o sinal que sumia a todo instante? Logo chegaria ao seu novo ponto de morada, logo chegaria ao seu novo lar... queria trazer ela consigo, mas, por ora, não podia. Ainda não tinha nada garantido nem para si, não podia mete-la nessa "encrenca", ainda que com ela tudo parecesse possivel, agora era hora de se fixar e aí sim traze-la pra cá.

Claro que o plano tramado era bom na cabeça dele. Claro que ela, a certo custo, compreenderia a visão dele, mas havia algo que eles não tinham planejado - e nem poderiam tê-lo feito -, algo que eles não tinham controle: a saudade. Assim que terminou de descarregar tomou o celular nas mãos. Redigiu uma mensagem curta enquanto olhava o céu.

Os dias que se passaram foram doloridos, foram cansativos arrumando tudo. Sempre que sobrava um minutinho - entre desfazer uma caixa e outra - mandava uma mensagem para ela. Já tinha eleito aquela lage, no alto da casa, o local que traria ela assim que possivel. Uma semana e um dia haviam se passado. Oito dias. Foi quando ele resolveu fazer algo que nem mesmo ela esperava. Aliás, nem mesmo ele.

Vestiu uma jaqueta grossa. Pegou o capacete e rumou na direção dela. Trancou a casa, deixou tudo por arrumar. Foda-se. Pensava enquanto guiava rápido. Se ela lhe visse andando nessa velocidade ela faria um bico do tamanho do universo. Sorte que ela não o via. Não agora. Olhou o relógio. Ela não estaria em casa. Do bolso. Daquele molho de chaves se lembrou que não tinha mais a chave dela. Entrou no edificio. Comprimentou o porteiro e subiu sem muita pressa, pelas escadas. Faria do tapete seu tapete finalmente. Aquele tapete de borboleta certamente reclamaria. Mas... não foi dessa vez. Lembrou da chave escondida no canto. Naquela lugar onde ficavam as mangueiras de incêndio. Ele havia deixado a chave ali uma vez que ela lhe fez voltar até a garagem pra achar as chaves que ela não conseguia achar na bolsa e, ao voltar suado, cansado, ela estava com as chaves da bolsa na mão. Por birra ele havia deixado as chaves ali. E ali ficaram. Ainda bem.

Entrou. Preparou o jantar e deixou a casa quieta, a luz fora como daquela terça-feira. Não era um repeteco. Um deja vú. Era real. Ele havia abandonado a casa inteira com mobilha e caixas para desfazer pra ir ao encontro dela. E daí que viajou horas? E daí que não tinha muita certeza no amanha? Se trancou dentro do apartamento. Dois minutos depois ouviu a porta destrancando... estomago embrulhado, borboletas na barriga, viu a silhueta na soleira da porta. Era ela.

sábado, 19 de janeiro de 2013

mata-molinhas

Tinha nascido com os pensamentos tão saltitantes, tão nas nuvens que seu cabelo era reflexo disso: tinha molinhas nos cabelos! Era algo que poucas pessoas tinham, era uma daquelas qualidades que a pessoa tem mas nunca valoriza direito, mesmo com todo mundo dizendo que ela é boa nisso ou naquilo, ela desacredita e não tem dó em "aplainar" as montanhas. Na infancia deviam lhe tirar algum sarro daquelas molinhas, daqueles cachos... tudo soava diferente. Tudo era diferente para ela. Dos pensamentos e sonhos com o céu até a forma como via as nuvens e o shampoo que usava (tinha de ser aquele johnson's baby pra cabelo de molinha, toim, toim).

Passaram-se os anos e ela seguia com aquelas molinhas saltitantes e os pensamentos igualmente esvoaçantes. Os desejos, as vontades cresciam conforme a vida passava. Podia pensar mil, duas mil coisas ao mesmo tempo. E não entendia porque ninguem mais era assim. A vida não era fácil sendo diferente, tendo essas molinhas diferentes de todo mundo. Foi então que algum desses bandidos que se encontram pelas esquinas, crackolandias da vida, lhe mostraram algo que fez ela pensar em fazer algo até então impensavel.

Claro que não era uma escolha fácil. Não podia fazer isso. Mas não conseguia mais suportar aqueles olhares e risos de canto voltados para ela. Foi então que ela se decidiu. Num dia de tempestade cedeu aos convites do "lado negro da força" e topou fazer aquilo... deixou as ondinhas, as molinhas... lisas, escorridas, iguais a de todo mundo. Fez por muitos anos. Ainda faz volte e meia... mas agora, ela pensa toda vez antes de fazer "sei que vai reclamar, que vai me odiar por isso, mas shiuu" e aquele "shiu" calava qualquer reclamação dele que, mesmo sem estar ali, repreendia-a por estar cometendo esse ato inominavel de matar as molinhas.

Mas não importava pra ele se ela estava ou não com as molinhas... era o que ela tinha por dentro que importava, ele sempre adorou mulheres com cachinhos, por isso a birra com as molinhas assassinadas dela. Era aquela birra de fazer bico e fingir que ta de mal só pra ver ela fazer carinha fofa pedindo desculpa e ele franzir a testa, fazer careta e dizer "ok, dessa vez passa... mas que seja a última" e ela sorrir sem deixar ele saber que não vai ser a última (pelo menos não enquanto ela não se livrar desse "vicio" de estrangular molinhas) e que eles seguirem assim. Mesmo distantes fisicamente, mesmo longes, mesmo sem sinal no celular, tinham seu canal particular, tinham sua forma de SEMPRE saberem como o outro estava... e era assim ontem, é assim hoje e será assim amanha. Eram assim o amor entre eles, era a mais profunda tranquilidade e a mais pura pureza.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Falta II

Não foi o primeiro post do ano. Não andava bem. Não se sentia bem nos últimos dias, andava calado pelos cantos, tentando ao máximo se mostrar forte. Enganava bem os outros. Mas a si proprio e a ela. Jamais conseguiria. Tinha receio que ela lhe ligasse no meio do dia, enquanto ele arrumava as caixas para a mudança e ele não conseguisse esconder dela como estava, como se sentia. Usaria muito bem toda aquela promoção da operadora de celular, é verdade. Falariam tantas coisas que ambos ficariam roucos. Claro que ele podia dizer tudo isso pra ela por email, por sms, por ligação... Mas sentiria a mesma coisa, o mesmo tal de "falta alguma coisa" que sempre sentia ao clicar no "enviar". E sabia que ela sentia o mesmo.

Todos os dias olhava o email, mas não via as respostas... até que acordou no meio da tarde, depois de uma tarde inteira afundado em cinza (e não eram os cinquenta tons, se houvessem dois, era muito) levantou com o telefone. Engano. Não ia dormir mais agora. Foi recolher a roupa lá fora... estava desespenraçado da vida. Tinha potenciais, tinha esperanças, tinha (muitos) sonhos e estava assim... inerte, sem força pra seguir adiante. Do lado de fora, com duas toalhas e uma camiseta no ombro olhou de relance pro céu. A eterna forma deles conversarem. Entre algumas nuvens viu a Lua. De dia mesmo. No mesmo instante se lembrou da lua que ela carregava ao pescoço. No mesmo instante ouviu ela - a lua, mas com a voz dela - lhe dizer: shiuu, vai dar tudo certo mô.

Os olhos se encheram de lágrimas, mas conteve por hora... quando foi checar o email nova frustração. Nada. Viu um estalo e foi ao cantinho tão deles. Lá viu que ela também sentia as mesmas faltas que ele. E ao ler que ela escreveu a mesma frase que ele ouviu da lua com voz dela não conteve as lágrimas. Debruçou na mesa antes mesmo de chegar ao fim da leitura. Mas tinha que terminar de ler. Focou a parede amarela que deveria ser rosa e achou ela lhe encorajando a terminar de ler. Foi nesse instante que olhou pra cima e agradeceu a papai do céu, mais uma vez, por ela estar em sua vida.

Sempre e pra sempre, não importando onde, como ou quando... juntoemisturadoprasempre

CB... também amo você!

domingo, 13 de janeiro de 2013

Lata de leite

Da fila da padaria, dentro do mercado, podia vê-lo em frente a prateleira de leite em pó. As roupas maltrapilhas poderiam não dizer muito além da condição dele. Na mão não mais que meia duzia de moedas. Não precisava ser nenhum matematico para saber que aquelas moedas - ainda que fossem do maior valor possivel das moedas - jamais conseguiria pagar pelo que tinha nas mãos: uma caixa de leite comum e duas latas de leite em pó. Todos que passavam por ele não o viam, era apenas mais um maltrapilho qualquer que vinha ao mercado se iludir que poderiar comprar aqueles produtos que tinha em mãos. Suspirei. Provavelmente ele não tinha mais dinheiro do que aquelas moedas. Todos passavam indiferentes. Poderia apostar que ele tinha uma filha, recém-nascida. Podia dizer isso pelo esmero com que segurava aquelas latas e que ela tinha alguma necessidade alimentar especifica, ordens medicas, disseram. Era fácil para o médico que ganhava bem prescrever leite em pó especial para uma criança qualquer, ele poderia pagar. Se os seus pacientes poderiam? Não era da conta dele. Hipocrita. Sociedade hipocrita. Enfim minha vez na fila do pão. Peguei os meus e fui até o homem. Paguei a compra dele que não deu mais de vinte reais. Não me faria falta e, seguramente, faria a diferença para ele e sua filha. Boa forma de começar o ano: ajudando um completo desconhecido.