terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Álibi VII e VIII - Epílogo

Sem muito esforço estilhaçou a janela de um deles e o arrombou. Quem liga pro alarme? Um alarme dispara no meio da madrugada e as pessoas só reclamam do barulho, não se importam em procurar saber se não é o carro delas. Assim Sophia chegou próxima de algumas ruas onde pequenas lanchonetes alimentavam jovens casais. Sorriu de canto. Agora estava em segurança. Do celular com chip clonado pediu um carro ao aplicativo. Demorou alguns minutos e lá estava o carro. 

Podia ir até próximo do seu prédio. Mas, além da corrida ficar muito cara, seria ruim. Por isso optou por descer dezoito quarteirões antes da sua rua. Lá pediu outro carro que a levou para próximo de um conjunto de apartamentos onde moravam alguns viciados em drogas, prostitutas e pessoas humildes. Se não a memória de Sophia não falhava aquele era o antigo prédio de Sérgio. Ela lembra de ter vindo com ele uma vez recolher a correspondência. De lá pediu mais um carro. Foi até seis quarteirões do seu prédio.

Por causa de todas essas manobras teve um pouco de dificuldade em pagar o último. Faltaram três reais. Por já ter passado das duas da manhã o motorista deixou passar. Agora era caminhar até seu prédio, sandálias nas mãos. Dar um fim em mais um chip de celular no primeiro boeiro que aparecesse. Ir até o carro e trocar de roupa.

Disparou o alarme do próprio carro e voltou correndo para o apartamento. Vinte segundos depois de entrar lá estava Sérgio. Na mesma posição. O interfone tocou. O prestativo porteiro da madrugada avisava que o carro estava com o alarme disparado. Sophia sorriu de canto e desceu desliga-lo.

Foi até a garagem. Desligou o alarme e pediu mil desculpas ao porteiro. Ao reentrar no apartamento encontrou Sérgio sentado no sofá acordado. Queria saber quem tinha ligado e onde ela tinha ido. O alarme disparou, amor. Ela respondeu o recomendando ir para a cama. Ele aceitou a sugestão e ambos foram para a cama.

Ela se cobriu. Sérgio ainda demorou alguns instantes dizendo estar no banheiro. Em seguida ele veio do banheiro. A nove milímetros que ele usava diariamente na mão direita. Uma lágrima se desenhava no canto do olho dele. Sophia demorou um instante para nota-lo com a arma em punho. Por que? A pergunta dele era justa. A falta de resposta dela também. Ele se aproximou. O temido fim havia chego. Merda. 

Pessoas emocionalmente instáveis são perfeitamente calculáveis. A mão de Sérgio estava trêmula. Ele não acertaria uma baleia mesmo que estivesse sentado em cima dela. O mais foda nisso tudo era que, apesar de não parecer, Sophia gostava dele. Esperava que pudesse ter algo com ele que durasse mais tempo, quem sabe ela até pudesse parar com aquela coisa dela. Tudo isso virou poeira que o vento levou.

Ele caminhou para perto dela dizendo que já tinha alertado algumas viaturas que chegariam em alguns minutos e que era hora dela se entregar. Mais dois passos se fizeram. Sophia já estava sentada à beira da cama. Mais um passo e pronto. O abajur virou cacos na cabeça de Sérgio. Não duraria muito o efeito do desmaio. A arma estava com a trava, por isso não disparou na queda.

Em um minuto e trinta segundos Sophia pegou todas as roupas que conseguiu socar em uma mochila e em uma mala grande, dessas de rodinhas. Na sala pegou o notebook, ponderou escrever uma carta, explicando suas motivações. Não. Não fez isso nas vezes passadas, por que faria agora? Foi até a garagem. Jogou no banco do carona sua pouca bagagem. No caminho passou por duas viaturas da polícia a toda carga indo para o prédio.

Os primeiros raios da manhã surgiam quando ela decidiu largar o carro próximo do gigantesco estádio municipal. Decididamente a pessoa que inventou aquele aplicativo de chamar carros merecia um prêmio. Sophia pediu que ele lhe levasse até a estação do metrô. Lá comprou um boné e outra bolsa para guardar o notebook. Em vinte minutos de metrô estava na rodoviária. Quando o sol, enfim, surgiu no horizonte angular proporcionado por prédios, embarcou em um ônibus indo em direção ao norte do país. A lágrima da ruptura que havia guardado durante a fuga apareceu agora. E junto dela vieram outras. Logo adormeceu completamente exausta. Ao acordar, horas depois, e pensar na possibilidade uma nova cidade sorriu de canto. O futuro, afinal, era promissor e apenas uma dúvida lhe vinha à mente: que cor pintaria os cabelos?

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Álibi VII e VIII

Ao chegar no lugar os dois alvos sentados no balcão. Um copo pequeno, daqueles de dose única, postado a frente de cada um. A julgar pelos movimentos mais largos aquela ali devia ser a segunda ou terceira dose deles. Sophia sorriu de canto, soltou a pequena bolsa no ar. Parecia uma das prostitutas que se encontravam no recinto. E pensar que uma de suas colegas de sala usava esse vestido para ir em casas noturnas. Sophia só o tinha porque a amiga esqueceu uma pequena mala com roupas vindas da lavanderia no carro.

Bagunçou o cabelo, começou a mascar um chicletes invisível. Achou que estava bem na personagem quando foi abordada por alguns caras numa mesa do canto onde jaziam oito garrafas de cerveja de pobre. Como toda puta que se preze, Sophia nesse papel, foi direto aos clientes que achava ter mais futuro. Por isso despachou os caras da mesa doze.

Sentou ao lado do sétimo. Pediu uma cerveja ao barman. Tipo filme americano a cerveja veio em uma long neck. Bebeu um gole e o alvo sorriu a ela e ao oitavo. Fisgou. Após cinco minutos de papo definiu que "faria um preço especial pros dois, pois o cafetão dela estava cobrando uma dívida de drogas dela". Tão logo tudo ficou decidido Sophia pediu uma garrafa de cidra para aquecimento e levou debaixo do braço. 

Foram para o carro do sétimo, que, na verdade, era roubado. Ou alguém tinha empresado. Embora fosse óbvio que ninguém emprestaria o carro para esses dois. O oitavo ao volante e o sétimo ao seu lado. Sophia no banco de trás rindo e pedindo pra ligar o rádio e procurar uma estação de música legal. Na diminuta bolsa ela moía seis comprimidos de dramim que havia trazido de casa. Será que com ácool o efeito potencializava? Provavelmente.

Sophia se recostou como se estivesse tendo alguma dificuldade em abrir a garrafa enquanto os dois amigos conversavam. Um dizia estar "comendo o pão que o diabo amassou", ela sorriu de canto. Iria fazer a bondade de faze-lo comer o pão que o diabo amassou in loco. Garrafa aberta, Sophia deu um gole curto e despejou todo o pó de dramim que conseguiu enfiar garrafa a dentro. Afim de misturar um pouco ela fingiu já estar bêbada na hora de entregar a garrafa.

O sétimo tomou primeiro, um gole longo. O oitavo, sem tirar os olhos da rua, bebeu um gole tão longo quanto o parceiro. Sophia pegou um gole e ameaçou beber um pouco. Logo devolveu a garrafa para os dois rindo e cantando a música que tocava. Conviver com as amigas piriguetes tinha lá suas vantagens.

Sophia sabia que eles tinham um lugar para "finalizar" seus negócios. E sabia que esse lugar ficava próximo da tal represa. Apesar da seca sabia que ali era um ótimo lugar. Não haviam muitas casas próximas, não haviam prédios. Era um excelente lugar na verdade, a iluminação pública era completamente deficitária nos últimos duzentos metros antes da margem da água. 

Embora o plano não fosse exatamente esse aquela rua às margens do local onde a água era captada tinha uma profundidade média de oito metros. Desde criança Sophia absorvia toda e qualquer informação, processava, categorizava e, em momento oportuno, a usava. Foi assim que soube dessa informação.

O carro parou. O remédio não tinha feito total efeito. O sétimo estava cambaleante mas o oitavo não. E ele acusou Sophia de colocar algo na bebida. Restou o último recurso. Ela saiu do carro, ao que foi seguida. Óbvio. A garrafa nas mãos logo encontrou o lobo frontal da cabeça do oitavo. Havia um resto de bebida na garrafa, o que respingou em Sophia. Merda. Teria de mandar lavar essa porcaria de vestido. Ou devolveria assim mesmo, a culpa era da lavanderia.

Como era de se esperar o oitavo caiu ao chão desmaiado. Merda. Sophia o arrastou para dentro do carro. Colocou o cinto de segurança, fechou as janelas. O sétimo estava preso ao cinto também. Engatou a primeira marcha, um tijolo no pedal de acelerador e o pé na embreagem. Bateu a chave. Antes da próxima ação pensou em todas as variáveis. Tinha de soltar a embreagem com calma se não o motor ameaçava morrer no processo de arranque. 

Pé direito dentro do carro. Pé esquerdo fora. Jogou o corpo para trás. Nunca tinha feito nada tão arrojado. Escorregou o pé, teve de se segurar à porta do carro para não cair. O carro deu uma guinada e ganhou um pouco de velocidade. Sophia teve tempo de tirar a perna e fechar a porta. O veículo seguiu até dar uma pequena decolada em de um pequeno barranco e cair na água fazendo muito barulho. Da bolsa saiu uma lanterna que foi usada para garantir que o carro afundasse e ninguém subisse. 

O carro afundou em três minutos. Ficou mais dez esperando alguém vir à tona. A menos que um deles fosse indiano e tivesse uma capacidade incomum de respirar debaixo d´água ambos estavam mortos. E isso encerrava a meta que havia proposto para ela mesma nesse ano. Agora tinha de ir embora. Passou por uma rua onde alguns carros seguiam estacionados. Achou a "carona".

domingo, 29 de novembro de 2015

Álibi VII e VIII - Prólogo

O plano estava feito. O azar do seu noivo com a perna quebrada era um azar dela também. Tinha de agir com mais discrição do que nunca, não que isso fosse um problema. Mas nos últimos tempos ela andava mais relapsa, menos sutil, até um pouco brutal. A ação anterior saiu em vários jornais. Tudo que sabiam era que o proprietário do lugar era investigado por aliciar crianças para uma rede de prostituição. 

Com um copo quase vazio de conhaque barato na mão onde duas pedras de gelo teriam o fim trágico de toda pedra de gelo, Sophia tramava o derradeiro ato deste ano. Teria de ser duplo. Apenas uma vez na vida fez algo assim e, essa apreensão por fazer algo relativamente novo a deixava mais nervosa. Por isso o conhaque que, Sérgio, insistiu em dizer que era paraguaio. Ela não o ouvia. Quer dizer. Ouvia, respondia, reagia, elaborava respostas, mas não sua parte racional. Deixava o corpo responder sozinho. Ligou o piloto automático para ele.

Como ele estava no sofá, perna esticada sobre um amontoado de almofadas, assistindo alguma série no netflix ela, postada não mais do que seis metros atrás, em uma pequena mesa, dizia ter um trabalho de faculdade "muito foda" que era pra ter sido em grupo mas o grupo deu pra trás e ela estava "se fodendo sozinha". Sérgio brincou dizendo que poderia dar voz de prisão pros tais amigos. Sophia riu-se e disse que não seria má ideia.

Sem muito esforço descobriu que o alvo sete e o oito frequentavam o mesmo bar em uma área próxima da maior represa que fornecia água pra essa cidade fétida. Por mais que morasse aqui tinha aprendido a nutrir certo ódio pela cidade. Não que sua cidade anterior fosse o paraíso, mas era melhor que esse caos, esse barulho eterno. Se ela pudesse fugia dali. Mas muito ainda tinha pra ser feito.

Estratégia traçada. Ainda era cedo quando Sophia decidiu que teria de resolver isso hoje, agora. Odiava protelar coisas. Ainda mais coisas tão simples. Só precisaria de um carro qualquer. Beber um pouco. Liquidar a fatura e fim. Mas como sair? Sérgio parecia um cão de guarda. Será que ele suspeitava de algo e, na verdade, não tinha quebrado a perna e estava ali para vigia-la?

Paranoia. A vez passada também teve esse tipo de paranoia e não foi o final feliz que tinha planejado. Embora soubesse que nunca teria um final feliz, pessoas como ela não mereciam finais felizes. Por isso misturou ao suco de Sérgio um remédio para dormir. Dois dramins moídos seguidos de uma aspirina pra aliviar as dores da perna que, provavelmente, estaria quebrada mesmo.

Deu o remédio e esperou. Trinta e dois minutos e Sérgio dormia igual um bebê no sofá da sala frente ao netflix ligado. Que cara de sorte, dormiu bem no fim do episódio. Sophia desligou a televisão e o cobriu. Rapidamente trocou de roupa. Um vestido mais sensual, um salto mais alto, uma maquiagem pesada e estava pronta.

Ao sair pela garagem foi até o carro. Ameaçou pega-lo, mas, na verdade, deixou ali uma bolsa com a roupa para colocar na volta. Saiu passando o muro dos fundos. Por um aplicativo chamou um carro. Gostava de certas modernidades. O aplicativo não guardava itinerários, passageiros, só distâncias. E o motorista não era como taxistas típicos. Ele se ateve a perguntar o destino e, ao fim da corrida, o valor. E, em nenhum momento ele olhou para ela pelo retrovisor. Perfeito.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

os 28

Então cheguei aos vinte e oito. Esse é o único post que escrevo falando de migo comigo mesmo, dou uma pausa nas crônicas e histórias diversas pra fazer um balanço da minha pequena existência nessa bola de carbono que convencionamos chamar de planeta e lar. Olhando aqui "de cima" dessa idade, não é nada demais. Sério. Nada interessante. Bem dizem que, depois de certa idade, o aniversário torna-se apenas um dia que te felicitam por algo que você não tem a menor culpa e que, muitas vezes, nem merece as felicitações.

Mesmo nunca tendo feito isso esse ano vou nominar de Lobo da Estepe em homenagem ao Hesse. O livro dele me trouxe dúvidas e questionamentos intrínsecos para a minha existência. Sério. Talvez tenha sido o ano mais estranhamente estranho dessa minha existência. Certos momentos foram rápidos e certos momentos duraram duas eternidades. 

Foi (e ainda ta sendo) o ano que me consolidei em algumas áreas dentro do gigantesco universo que é a publicidade. Editar áudio pra rádio que sempre foi uma das coisas que mais gostei (quem me conhece sabe da minha relação com as "ondas do rádio") e agora (uau) me pagam pra fazer isso. A outra, menos surpresa, a redação publicitária muito me interessou. 

No mais não tenho muito pra falar, esse ano comprei mais minis (preciso de espaço), mais livros (preciso de espaço²), um PC, mantenho a manutenção da Eleanor (minha fiel companheira de viagem, ela, que, se você leitor recente não conhece, é minha bicicleta que tem nome, história e gênio próprios)... 

Então quero, hoje que se registra a data em que nasci (curiosamente uma sexta feira, como hoje) agradecer todos que vieram parar na minha vida nesse ano (ou eu fui parar na vida deles, sempre me perco nesses paradoxos) e agradecer, sobretudo, quem já me conhece a mais tempo por permanecer na minha vida (sério, os parabéns são pra vocês por me aturarem). 

Agora se você não suporta o Corinthians foda-se, porque preciso dizer isso: eram vinte e três horas e cinquenta e dois minutos quando acabou o jogo e tornamo-nos hexacampeões brasileiros. A "taça" é um presente antecipado. Quem me conhece sabe que tenho um ligeiro fanatismo pelo Corinthians (leia aqui e aqui pra saber mais ;)

E... enfim. Finalizo com os votos de sempre: que os vinte e oito sejam vinte e oito vezes melhores do que foram os vinte e sete.


ps¹: Sobrevivi aos vinte e sete. Não sou o gênio que achava ser haha


ps²: Ainda gosto da música da crônica de aniversário do ano passado: Y que sea lo que... sea (e o que tiver que ser... será!)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Álibi VI

Havia dado mais de um mês entre uma ação e o agora. Sophia sentia que era hora de continuar seu plano. Faltava muito pouco tempo para o final do ano e ainda tinha três alvos na sua meta. E se não conseguisse? Pergunta idiota. Claro que conseguiria. Por mais dificil que fosse ela sempre conseguia alcançar os objetivos que dava para si mesma no começo de cada ano. Fossem eles qual fossem. Claro que, numa cidade nova, como esse ano, ela teve de pegar mais leve. Em anos anteriores a conta tinha passado de duas dezenas. Porém, naquele ano em especial, ela estava em um ambiente que ela não conhecia completamente.

Tudo começava abrindo aquele pendrive do fórum em que estagiava que lhe dava as senhas dos arquivos deixados em um HD virtual. Naquele ano farto que teve ainda não confiava plenamente na internet e suas facilidades. Por isso guardava tudo em papel impresso. E foi esse papel impresso que lhe trouxe a ruína. Foi a única prova que lhe incriminou. Na hora em que sua máscara caiu pegou tudo que pode, colocou algumas roupas na mochila e, a caminho da rodoviária comprou uma tintura ruiva. Teve de abandonar as madeixas loiras que sempre foram sua marca registrada. Sempre foram seu chamariz. Sempre foram as mais perfeitas iscas. Embora ela tenha provado que, uma vez ruiva, atraía tanta atenção quanto sempre atraiu.

Devaneios a parte era hora de concentração e estudar os poucos hábitos de seu próximo alvo. Ele gostava de nadar em um clube desses de gente rica. Será que seria dificil para Sophia se infiltrar, o atrair e... porque não inovar. Já que "sua" casa estava praticamente toda destruída tinha de pensar em novas formas de agir. Com um pouco de engenharia social e uma boa lábia conseguiu se cadastrar no clube com outro nome. Tinha de ir um dia, descobrir todas as câmeras e saber evita-las. Claro que foi lá apenas uma vez. Ficou visivel para seu alvo. Ela trajava uma calça leggin tão justa que se respirasse de forma mais pesada temia estoura-la. Ele a viu. Ela deu a entender que estava dando mole. Um peixe tão fácil de fisgar que poderia ter economizado trinta reais nessa calça ridicula.

Em um movimento rápido entregou a ele o número de celular que ela havia comprado minutos atrás. Só teria esse número por alguns dias. Para ativar a linha colocou um dos inúmeros CPFs que guardava no fundo falso do notebook. Ao sair do clube não demorou dez minutos e o alvo lhe ligou. Perfeito. Ele disse ser um dos presidentes do lugar e que ele tinha acesso às chaves. Mais perfeito que isso apenas se ele já estivesse morto. Quer dizer, se ele já estivesse morto não haveria motivo de mata-lo e ela teria de achar outro alvo afim de completar sua meta. Combinaram um barzinho no fim de tarde. Como Sophia esparava ele bebeu mais do que o suficiente para sair da sobriedade. Não precisava de mais nada.

Voltaram ao clube por um comentário despretencioso - ou outra isca? - que Sophia jogou: ela tinha vontade de nadar nua com ele. Qual homem não acharia isso perfeito? Uma ruiva, jovem, bonita querendo nadar nua em um clube que se é um dos presidentes? Voltaram ao clube, vinte e duas e dezoito. Sérgio, noivo de Sophia, estava de plantão do outro lado da cidade e dificilmente chegaria aqui antes do amanhecer. Amanhecer, que era o fim de seu turno. Cairam na piscina nús. Sophia agradeceu mentalmente à sua irmã mais nova pela mesma ter lhe ensinado a nadar.

Aquelas mensagens que bombeiros dizem dos perigos de se beber e entrar no mar ou na piscina são reais. Talvez um tanto quanto exagerados. Mas não precisou mais do que vinte minutos dentro da água para o alvo começar a demonstrar sinais de que não aguentaria muito mais. Claro que uma pequena ajuda fez o corpo afundar mais rápido. Sophia parecia estar com mais pressa do que o habitual. Tinha pouco tempo e uma meta a cumprir. Por isso a pressa. Era o que dizia para si mesma. Era o que deveria ser verdade. Aliás, era a verdade.

Poucos minutos depois caminhou de volta até o carro. Prendeu os cabelos com a toalha que havia trazido de casa. No caminho para casa pensou que ainda tinha mais dois alvos até o final do ano. O tempo era apertado. Mas ela adorava desafios. Nem todos eles, claro. O desafio agora era escolher algum seriado que lhe prendesse a atenção por algum tempo e lhe inspirasse em novas ações. Achou. 

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Álibi V - Epílogo

Sophia considerou o dia bom. Tudo havia dado certo. Já tinha o próximo alvo em vista, era o que havia perdido no ranqueamento para o medalhão. A julgar pela altura e intensidade do fogo não teria problemas. Assaria ele sem deixar nenhuma prova intacta. Pena que não poderia usar esse local novamente. Mas adorava um desafio. Dirigia pela estrada de terra muito bem cuidada imaginando o quanto precisaria para atrair o novo alvo. 

Um local, uma premissa, uma situação e a atração. Faltavam duzentos metros e Sophia sentiu necessidade de acelerar, alguma coisa lhe causou estranheza. Olhou no relógio, três e oito da manhã. Às seis e quarenta e quatro Sérgio chegaria. Tocou o primeiro pneu no asfalto. Um farol passou por todos os retrovisores do carro. Da esquerda para a direita, voltando da direita para o centro e se fixando no retrovisor central.

Das duas uma: ou era um carro velho com um dos faróis queimados ou era uma motocicleta. Por essa ser uma rodovia estadual Sophia teve certeza que era uma motocicleta. Acelerou. Por dez minutos se distanciou do farol. Até chegar a um semáforo. Não podia tomar multa, não estava ali. Foi quando a motocicleta parou ao seu lado.

No guidão havia alguma coisa anormal, mas não era identificável com aquela condição de luz e ali dentro do carro. Uma câmera? Não. Não podia ser. Seja lógica, Sophia. Deveria ser uma daquelas antenas pra evitar linha com cerol. Perfeito. Era isso

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Busca Madruguenta

Apesar de ter vinte e sete anos eu sentia na pele raiva e frustração. Mais uma vez minha mãe não quis forçar meu pai a me apresentar meus irmãos. Meio irmãos na verdade, o pai era o mesmo mas a mãe era outra. E o mais foda nisso tudo era que morávamos em cidades vizinhas - porém na maior região metropolitana do país, vinte milhões de pessoas, o que tornava a busca um pouco cansativa e complicada. 

Depois de mais uma discussão que durou duas horas fiz o que fazia desde quando era criança: peguei minha moto e vazei dali antes de fazer alguma burrada. Claro que, quando era mais nova minha moto tinha apenas três rodas era fabricada pela Xalingo. Hoje era uma Hornet de seiscentas cilindradas. Uma psicóloga da escola - lá da época eu fugia com minha Caloi - dizia que eu fazia isso pra me distanciar dos problemas e, assim, de cabeça fria, os solucionar.

Por isso eu estava na rodovia duas e quarenta da manhã a cento e quarenta por hora. Queria fugir dos meus problemas. Eu, Alice, dona de minhas faculdades mentais, fugia dos problemas igual a quando era criança. Foi quando pensava nisso que ouvi um estrondo seguido de um cheiro de fumaça. Nessa parte da estrada não haviam casas ou algo do tipo. Obviamente diminuí a velocidade e vi sair de uma dessas estradas vicinais um carro em alta velocidade. Pude ver o modelo, a cor e veria a placa, se um calafrio não me corresse por toda a espinha. Deixei o carro se afastar, mas logo estava atrás dele, parada em um semáforo na entrada da cidade.

No volante uma moça, meio ruiva, meio loira. Agora que tinha reparado a câmera estava instalada na guidão da moto. Será que ela era minha irmã? Já pensou? As probabilidades disso ocorrer eram pífias e mesmo assim aproveitei que a câmera estava ali e filmei a placa e meio rosto de minha irmã. No final de semana iriamos pra uma cachoeira não muito longe daqui, passaríamos horas conversando e depois... o caminhão dos bombeiros passou na direção oposta me tirando do mar de pensamentos. Melhor ir pra casa.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Álibi V

Sophia se deparou com um pequeno dilema enquanto se programava para a próxima ação. Queria saturar as investigações de peças ao ponto que eles demorassem muito tempo para montar. Igual aquele quebra-cabeças de mil peças que ninguém teve coragem de tirar da caixa. Tinha duas opções. Queria chegar a oito. Teria de dobrar a quantidade que havia feito e tinha de ser até o final do ano. Sorriu de canto ao pensar em resolver o que deveria ter se programado para fazer durante o ano inteiro em pouco mais de três meses. Seria correria. Mas em outros tempos também não havia sido fácil cumprir essa meta. 

Ao fim de algumas horas de investigações chegou ao dilema que lhe havia feito pensar em tudo. Os dois mereciam que fosse ela a ceifadora. Mas qual deveria vir primeiro? Tinha de fazer um ranking. Não. Racionalidade. Era só o que precisava. Pensar em qual despistaria melhor a polícia. Por um instante ignorou o fato de seu noivo ser o encarregado dessas investigações. Se o tal de destino existia ele conseguia ser sempre cretino com Sophia. Tudo bem que ela procurou-o, ela o conquistou, mas aí ele ser o escolhido para investigar o que ela fazia? Era ironia demais.

Proximidade física. Esse foi o critério. Quanto mais longe dos lugares onde ela sempre estava, melhor. Aquela velha casa na estrada a caminho da cidade vizinha viria a calhar. Já faziam alguns meses, então ninguém mais peregrinaria ali. Aliás, ali não havia nada que valesse a investigação. O segundo havia sido achado duas dezenas de quilômetros dali. A princípio tinham dito que era um corpo desovado pelos traficantes de rio acima. Mas logo as investigações demonstraram que ele não tinha nada de suspeito para ter ido falar com traficantes. Logo ligaram ao primeiro e agora deveria haver um quadro com fotos dos corpos, ligados por pequenas provas que devia ter deixado cair ligadas por um fio de lã, igual aqueles seriados.

Mas repetir cena? Sophia bebericou um gole de café amargo enquanto ponderou em algo diferente. E se queimar a casa? Ela estava abandonada mesmo. Não. O fogo poderia se alastrar e queimar o que restou de floresta. Se ainda fosse lá no sul poderia jogar do penhasco. Aquela estradinha de pedra a caminho do litoral era perfeita. A neblina sempre escondia as ações. Fora que na volta poderia comprar deliciosas balas de banana. Suspirou longamente ao lembrar daquele pedaço de paraíso. Pensou se um dia conseguiria voltar lá. Teria de conseguir.

A ideia de queimar voltou. Por que não? Havia um grande gramado baixo, uma piscina rachada. Agora tinha de atrair a vítima. Não era difícil. Em um dos plantões de Sérgio, Sophia saiu com colegas de faculdade. Naqueles encontros duas coisas eram certas: haveria uma discussão ferrenha sobre pena de morte entre dois pretensos juízes federais e depois de quarenta minutos os pretensos promotores-com-olhos-de-águia ficariam tão bêbados que não notariam o sumiço nem da sua mão direita. Perfeito. Mentalmente riscou perfeito. Ela sabia que perfeição era péssimo.

Passados quarenta e dois minutos as oito pessoas da mesa apenas Sophia estava sóbria - ela tomou refrigerante de limão a noite toda. O alvo tinha o péssimo hábito de ir à um botequim conhecido pelas frequentes mortes por causa de jogo de cartas, sinuca, prostitutas, futebol ou qualquer outro motivo banal. Só não fechavam aquela espelunca por ela ser usada por conhecido vereador do bairro para lavar dinheiro de emendas públicas roubadas do povo. Tal vereador seria o último.

Após uma dose de tequila com o alvo atual. Que já havia matado meia dúzia de almas perdidas em álcool nesse e em outros botequins, Sophia o arrastou para o carro. No porta-malas haviam cinco litros de óleo diesel. Enquanto o homem achava que estava se dando bem por arrastar uma gostosa pro meio do mato Sophia pensava em como seria. Não tinha armas. Não queria estrangular. Enforcar muito menos. Por um segundo quis perguntar pra sua amiga Janaína se ela tinha alguma ideia. Afinal ela seria publicitária e publicitários tem ótimas ideias sempre.

Como era noite devia haver neblina. Perfeito. Ao chegar na pequena propriedade abandonada tudo estava mais ou menos no mesmo lugar. O mato havia crescido um pouco. Deixou o farol aceso mirando a piscina. Arrastou-o para lá. Certamente aquela tequila havia sido uma das várias bebidas da noite dele, ele estava completamente bêbado. Ao descer a pequena escada o deixou em pé. Caminhou por trás e lhe deu um mata-leão. Não para quebrar seu pescoço, apenas faze-lo desmaiar.

Se seu amigo instrutor de Jiu-jítsu estivesse certo uma chave de braço deixaria quem levou o golpe desacordado por uns dez minutos. Sophia se lembrou que na casa ainda tinham cortinas. Correu na casa, arrancou a primeira cortina que viu. Enrolou a vítima como um medalhão de frango é enrolado por bacon. No caminho de volta havia pego o diesel. Jogou todo o conteúdo sobre o medalhão. Fez uma pequena trilha enquanto se afastava e riscou um fósforo. 

Assim que o pequeno palito bateu no chão correu em direção do medalhão. Sem explosão. Apenas fogo e uma fumaça escura. Sophia havia saído de suas atitudes sutis. Fez um puta sinal de fumaça para a polícia. Por um instante de lucidez percebeu o quê fez. Odiou ter saído de controle. Por alguns instantes ficou admirando enquanto o medalhão acordava com seu corpo em chamas. Um minuto e todo o movimento cessou. O fogo não se espalharia. Na volta pra casa parou em um mercado vinte e quatro horas. Toda aquela ação a deixou com fome. Fome de besteira. Comprou medalhão de frango enrolado em bacon. Foda-se a dieta com pouca gordura. Amanhã era segunda-feira. Amanhã começaria a dieta. Ótimo.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Álibi IV - Epílogo

Sophia estava particularmente mais irritadiça que o normal. Como assim será que ela sabia de algo? Agora porque um crime ocorre na sua faculdade ela é obrigada a saber? E porque diabos Sérgio pegou esse caso? Tudo bem que ele é bom investigador, mas aí a acharem que ele é o melhor para caçar o caso mais complicado dos últimos anos nessa cidade? Era demais. 

O pior era que, por mais que tentasse, Sophia não se recordava com clareza a totalidade de suas ações naquela noite. Lembra de ter escrito o bilhete e de, horas depois, estar em casa jantando. Aquelas duas horas e meia de lacuna sufocavam-na completamente. Na última vez essas lacunas levaram meses e duas dezenas de alvos para aparecer, agora estavam aqui. No quarto alvo. Em frente do espelho do banheiro embaçado ela se encarava. Era um vulto do que já foi? Não tinha a resposta. 

Tudo que precisava, agora, era se acalmar. Respirar fundo e pensar nas próximas ações. Sophia passou a mão no espelho o limpando. A imagem ficou clara. Assim como seus pensamentos para pensar nos próximos passos. Seu noivo a esperava no sofá, uma bacia de pipoca no colo e um filme engatilhado. Embora o conceito gatilho não combinasse com o filme que Sérgio havia escolhido. Nos poucos trechos que prestou atenção ao filme notou que era um daqueles filmes de ação que todo mundo assiste mas não há nada para se absorver. Só explosões e erotismo barato.

Naquela noite não dormiu direito. Ou melhor, nem dormiu. Ao ser questionada da insônia pela manhã culpou alguns trabalhos de faculdade e a TPM, a sempre melhor desculpa para qualquer coisa adversa que uma mulher podia dar.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Nem Tudo Muda

Depois de um certo tempo aprendi a ouvir as pessoas que moravam aqui. O vizinho do apartamento a direita tinha um passo rápido, levemente manco do lado direito. No apartamento da esquerda vivia um casal que sempre saía junto. Ela com salto baixo e ele com sapato macio que fazia aquele barulho de tênis novo no piso do corredor. Nos demais apartamentos os sons variavam conforme o dia. No andar de cima uma mulher, provavelmente já com mais idade, ia para a missa todo domingo de manhã. Quando estava voltando de algum lugar a ouvia sair. No andar de baixo havia uma familia onde o pai saía primeiro e depois a mãe levava as crianças para a escola, não saberia precisar a idade de nenhuma dessas pessoas apenas pelos passos. A ruiva certamente saberia isso.

Poderia compor uma música só baseada nos passos das pessoas. Seria interessante. Quem sabe até fizesse algum sucesso. Anotei a ideia para não esquece-la. Esquecer. Essa palavra me fez caminhar até a bolsa jogada no sofá e procurar os cigarros. Ah é, eu tinha parado. Meu vício se tornou outra coisa agora: café. Caminhei até a cozinha e fiz logo uma jarra completa de café. Nicotina da uma abstinência foda. Nada melhor pra superar um vício do que outro.

Estudar música me deixou mais atenta aos sons ao meu redor. Foi assim que ouvi a fechadura sendo destrancada por fora. Não pela chave. Mas por dois arames sobrepostos e um terceiro rodando a tranca. Dois. Quatro. Seis. Oito segundos. Foi o tempo que o invasor levou para abrir minha porta. Ou melhor. A invasora. Bem dizem que quando se pensa em alguem esse alguem aparece. Minha mãe diz isso. Por isso ela evita pensar em qualquer coisa ruim. É uma ideia interessante. Ela não levou nem quatro passos da entrada até a cozinha. Morar nesse apartamento pequeno era uma merda. Mas ao menos tinha dois quartos onde um deles se tornou meu pequeno estúdio, tinha uma visão lateral da Torre Eiffel e ainda estava a minutos do centro de Paris.

Não me movi. Não confiava nessa cafeteira sozinha. Foi assim que Elisa Stone parou no batente da porta da cozinha e perguntou se eu a tinha ouvido. Claro. Completei dizendo que na próxima vez ela podia bater na porta, arrombar assim pode não ser bem visto pelos vizinhos. Obviamente ela disse não ligar para isso. Ofereci um café. Ela preferiu um chá. Britânicos. Só agora vi que ela trazia um bolo pequeno, desses de rotisseria. A embalagem era da melhor rotisseria de Paris. A ruiva estava ficando menos mão de vaca com o passar dos anos. Bom saber que as coisas mudam com o tempo. Eu comecei como uma pintora e agora tocava em uma banda de rock. Ela começou como ladra e agora arrombava portas de artistas indefesas... é, nem tudo muda.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Céu Azul

O céu azul era uma afronta ao humor dele. Se o céu estivesse cinza, fechado estaria mais próximo do humor dele. Aliás, se estivesse completamente fechado, um céu completamente escuro, típico de antes da tempestade, melhor. Mas não. Claro que ele tinha momentos em que o céu azul era reflexo do humor dele, mas esses momentos duravam cada vez menos. Uma saída, uma noite, uma festa, as companhias, tudo era bom. Mas cada vez mais efêmeros.

Não havia culpados nem absolvidos. Talvez o mundo, ou talvez não. Sentia falta de algo crepitando em seu peito. Aquela velha chama, aquela ânsia de correr atrás de novos objetivos, de amores a muito cultivados. Tudo isso acabou tal qual um disco que chega no fim e pára de rodar quando a agulha toca o miolo do disco. Sempre teve algum motivo ou objetivo que lhe fazia sempre ou virar o disco, ou voltar ao começo. Algo Machadiano. Machado? Por um instante um velho pensamento lhe correu por toda a mente, materializou-se na espinha e voltou ao cérebro. Fausto e Mefistófeles. Tinha de ler logo esse livro. Anotou mentalmente essa observação.

No fim mais uma semana corria sem grandes sobressaltos. Nada novo. Nada velho. Nada requentado. Apenas aquela maldita rotina. Quando pensava em rotina ele sentia ânsia de largar tudo. Jogar tudo para o antigo e empoeirado foda-se. Não. Não podia. Ainda não. Tinha compromissos. Mais três anos dizia a razão. Mais três anos, dizia a prudência. E depois? Será que o velho sentimento de sumir dali voltaria? Será que depois de tantos anos ainda teria fôlego para sair? Tinha de sair. Isso era um fato. Mas... não. Balançou a cabeça negativamente. Não era hora de pensar nisso.

Então estava decidido a ficar assim? Tinha de ter uma saída. Tinha? Novamente Fausto voltou ao pensamento. Machado. Preferiu pensar em Machado. Atar as duas pontas e assim reviver a mocidade. Ainda que não fosse velho, tinha muitas memorias e pensamentos que deviam ser tirados da mente e guardados em um baú. E como se fazia isso? Colocando novos pensamentos. Mesmo com o aniversário longe tinha entrado naquela aura existencialista que ficava acometido todo ano nas semanas que antecediam a nova idade. Precisava sair. Desse final de semana não passaria aquele passeio a sós que faria. Quer dizer, a sós não. Aquele passeio de sigo consigo mesmo. Estava decidido. E agora? Passou a tolerar mais o céu azul? Não. O humor melhorou, mas ainda preferia que o céu estivesse cinza. Apenas cinza. E isso, era o melhor que podia fazer pelo dia de hoje.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Noite de Chuva

Os dias se seguiam um igual ao outro. Claro que não totalmente iguais, mas, ainda assim não haviam grandes sobressaltos,  um dia era mais normal que o outro, o outro era mais normal que um. Por um instante, enquanto ouvia a chuva bater com relativa força no telhado se lembrou de uma conversa que havia tido com um colega de trabalho que se dizia sufocado pela rotina. Ele, por sua vez não sentia isso. Não até agora. Tentava buscar na memória um motivo para sua recente calmaria. Não encontrava.

Até que, revirando gavetas achou uma foto. Aquele olhar dela, o olhar que Paulo Ricardo eternizou, aquele meio de lado, já saindo, indo embora. Como haviam chegado nesse ponto? Bem dizem que quando um não quer dois não brigam. 

Suspirou imaginando-a na janela, cigarro aceso e os mesmos sentimentos. Será? Resolveu se deitar. Amanha teria outro dia "empolgante" no trabalho. Rotina de merda. Fechou os olhos, a chuva perdeu o ritmo. Adormeceu.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Álibi IV

Bastaram alguns dias para que, na mente de Sophia, todo o plano se arquitetasse. Usou de um pouco de engenharia social para descobrir qual era o carro do tal professor. Com essa informação tinha como agir. Depois de um bilhete no para-brisa dele no qual ela dizia ter batido seu carro no dele e quebrado a lanterna ela o trouxe tal qual peixe que cai em rede de pesca para seu habitat: um canto distante do campus onde alguns alunos que moravam no campus deixavam seus carros e a iluminação era pobre.

Qual metodo usaria? Não tinha nenhuma arma consigo. Vasculhou o porta-luvas e achou um canivete, desses que se compra em lojas de quinquilharias. Checou a faca. Completamente cega, porém pontiaguda o suficiente para furar. Viu o carro do tal homem vindo. Não se lembrava do nome dele. Tinha de ser rápida, mais meia hora e levantaria suspeitas.

Assim que ele estacionou o carro perto do dela, Sophia saiu do carro jogando o cabelo de lado. "Olha, foi sem querer... eu posso pagar o conserto do seu carro...". Primeira parte concluída. Se fazer de vítma indefesa. O pato caiu na armadilha. "Claro meu bem, podemos negociar... o que acha de negociarmos aqui mesmo?" Soltou ele já com a mão sobre a braguilha da calça e um sorriso cínico nos lábios.

Escondendo o canivete Sophia concordou deixando que ele se aproximasse. Ela manteve o sorriso fino dando um olhar sutil a linha de cintura dele, como se tivesse entendido a indireta dele. Que sujeito nojento. Com a proximidade dele ela deu uma volta completa nele. Quando ele deu a brecha ficando de costas, ela o segurou pelo pescoço. Chave-de-braço. Mata-leão. Não importa o nome do golpe. Sérgio havia ensinado para ela em uma noite em que beberam vinho demais.

Em poucos segundos o professor perdia os sentidos. Lembrava que tinha, no porta-malas, alguns metros de corda de varal. Não era muito, mas seria o suficiente. Com cuidado checou o carro do professor. Muito material artistico, uma câmera fotográfica e alguns rolos de fita adesiva. Perfeito. O arrastou até um pilar de um dos prédios desativados. Seria ali. Colou a boca dele com uma meia e fita adesiva. As mãos e pés amarrados para trás. Agora era ele acordar.

Em questão de cinco minutos ele acordou com o olhar de pânico. Sophia se abaixou diante dele. Abriu-lhe as calças. O olhar dele se modificou. Tolo. Ainda achava que se tratava de um jogo. Quando a mão fria dela o tocou ele soltou um suspiro. O filho da puta estava gostando. Sem muitas opções cravou a pequena lâmina no escroto. Entre as duas bolas. Devia ter estudado anatomia. Errou todas as veias maiores. O pouco sangue que saiu mal lhe sujou a mão.

Se ergueu diante dele que agora retomou o olhar de pânico. "Gostando, meu bem?". O olhar de Sophia era de fúria. Por mais que Janaína não admitisse ele já havia dado em cima dela. Tal qual terrorista islâmico Sophia caminhou lentamente até ficar atrás do professor. Com uma mão na testa dele posicionou a lâmina no lado esquerdo do pescoço. Teria de fazer força se quisesse resolver isso logo. Um pequeno jorro se fez ao romper a carótida esquerda que levava sangue limpo ao cérebro. Ou seria a carótida direita que fazia isso? A segunda artéria se rompeu. O sangue manchou a camisa xadrês do dito professor. 

Não era como nos filmes onde o sangue jorrava vários metros para frente. No instante do rompimento sim, houve um breve jorro de sangue. Porém no instante seguinte o sangue começou a escorrer como em qualquer machucado. Mas com muito mais intensidade. Sophia ficou admirando o olhar dele ao perder seu liquido vital. Provavelmente ele não gritaria, se tivesse acertado o cálculo teria rompido as cordas vocais dele. O rosto foi ganhando um tom cada vez mais branco até ficar tão branco quanto a pintura que descascava lentamente no pilar. Deixou o carro dele aberto. Sabia que alguns bandidinhos locais passavam por ali vez por outra roubando carros. A chave estava na ignição. Com sorte eles sairiam com o carro e, quando descobrissem o corpo, o carro ou estaria em pedaços nas milhares de lojas de peças roubadas ou estaria no Paraguai, traficando cigarro falso.

Suspirou com a missão cumprida. Voltou ao seu carro limpando as mãos de sangue e jogando o papel em baixo dos bancos do carro. O que quer que fosse feito do carro os papéis sumiriam. No caminho para casa se livrou do canivete. Um dos vários riachos emcobriria seu parceiro por um longo tempo. Não precisaria ser eternamente. O suficiente já estava bom. Em casa o cheiro de macarrão ao sugo lhe entorpeceu. Apesar de pouca dor no pé Sérgio não deixou que ela lavasse a louça. Sophia buscou algum canal na televisão que mostrasse algo bom. No canal de filmes antigos achou o clássico de Hitchcock. Pacto Sinistro. Perfeito para encerrar a noite.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Prólogo - Álibi IV

Doença. Provavelmente até os melhores já passaram por isso. Aliás, doença, inclusive, já levou muita gente. E, com Sophia, não era diferente. Como dizia sua mãe que desgraça pouca é bobagem primeiro um resfriado que se tornou gripe e, graças aos cuidados de seu noivo Sérgio tudo não evoluiu para uma pneumonia ou algo mais grave.

Durante sua reclusão forçada acabou faltando aulas da faculdade. Todas as faltas seriam justificadas e todos os eventuais trabalhos seriam compensados de alguma forma. Era tudo que ela queria para voltar ao que considerava ser quase uma missão. Quando se preparava para voltar, fazer todos aqueles dossiês mentais que fazia de suas vitmas outra interpere cruzou seu caminho: um degrau pisado em falso e lá se ia o tornozelo esquerdo. Logo o esquerdo. O pé da má sorte fazendo mais uma das suas.

Por não conseguir repousar o tempo certo e temendo perder mais aulas e acabar reprovando em alguma disciplina Sophia forçava os passos, não tinha medo de caminhar pelos corredores do Fórum durante a tarde e pelos corredores da faculdade durante a noite. E de manhã mantinha a faxina do apartamento em dia. Sérgio quase brigava com ela por não conseguir parar quieta.

Ela não conseguia parar justamente por não poder fazer o que tinha planejado fazer durante aquele ano, se movimentar com coisas cotidianas lhe faziam espairecer. Já tinha atrasado o mês de abril, maio, junho e agora, em julho, tinha de retomar. Era sua tarefa. Nos dias que o tornozelo não a deixava caminhar muito fazia suas pesquisas nos bancos de dados da polícia. Buscava um novo alvo. Uma nova cena que pudesse dirigir por completo. Quando pensou nisso novamente a ideia de cena veio à sua mente. Será que ela não se daria melhor fazendo um curso de cinema? Talvez no verão. As leis eram sua paixão.

Apesar de reclusa na maioria do tempo, Sophia tinha lá sua cota de amigos na faculdade. Alguns amigos e algumas amigas. Habilmente escolhidos por inúmeras habilidades e por tons de afinidade em alguns assuntos e por tons de dissonância. Também tinha esse mesmo "cálculo" no estágio. O que, segundo pensamento dela, lhe traria alguma vantagem num momento oportuno. Fosse contato profissional, fosse o que fosse.


Dessa cota de amigos talentosamente selecionados uma amiga se destacava um pouco. Ela se dizia melhor amiga de Sophia e Sophia tinha lá sua dose de carinho por essa amiga. Não era grande a dose, se fosse possivel classificar entre números de um a dez, Janaína teria seus sete pontos e meio. E, por mais estranho que pudesse parecer, Janaína fazia um totalmente diferente. Ela cursava Publicidade. Viviam às voltas pelos corredores conversando sobre os mais variados assuntos. Desde Tolstói, Bukowski e Kant até receita de estrogonofe, cor de unha até marca de absorvente sem abas.

Foi em uma noite de animada conversa que soube de Janaína a existência de um professor que assediava alunas. Que abusava de sua autoridade como professor. Que agia arrogantemente. Como boa ouvinte Sophia prestava atenção nos relatos imaginando como seria bom se livrar desse cara. Já conhecia um pouco a má-fama do sujeito, mas nunca soube de algo além de soberba e um ego elevado.

(... continua na segunda)

terça-feira, 12 de maio de 2015

Lápis

Enfim centrei o pensamento. Em um lapso de consciência desde que cheguei aqui me lembro de terem falado algo como ter um caderno em uma das gavetas. Meu corpo não respondia como eu queria, esse devia ser o preço dos remédios que me empurravam goela abaixo. Nunca caminhar três passos foram tão dificeis. Ao lado do caderno havia um lápis e não uma caneta, alguém aqui dentro devia saber a teoria da Janaína que canetas não tem sentimentos.

Com o caderno em cima da mesa tentei lembrar a quanto tempo estava aqui. Essa memória sumiu. Pior que ao pé da cama não haviam aquelas plaquetas de filme em que acompanhavam meu andamento e blá-blá-blá. Tentei posicionar o lápis entre os dedos, a mão tremia. Levei o que julguei ser dez minutos pra escrever uma linha. É, Helena, bem dizem que sempre é possível cair mais. Mas, uma hora se chega ao Japão e se volta a ficar no topo. Ao tentar escrever isso uma enfermeira entrou, ela trazia dois copinhos de café, mas sem café. Em um pilulas no outro gelatina de limão. Ao me ver ao caderno ela sorriu. Puta merda, ela tem olhos puxados. Será que cheguei ao Japão?

Tomei os comprimidos e ela me disse que logo eu dormiria e que uma boa ideia era eu ir pra cama e que, se fosse o caso, mais tarde ela me ajudaria a escrever algo. Antes de apagar perguntei o nome. Natália. Apaguei

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Muro

Desde que Helena voltou pra casa, depois daquela temporada comigo o mundo tornou a acelerar, minhas aulas voltaram, um estágio surgiu o que acabou me afastando de Helena. Semanas depois recebi uma ligação, durante a aula, do pai dela me perguntando se eu sabia dela, que a situação havia se agravado... decididamente eu devia ter feito psicologia. Depois de alguns minutos falei que daria um jeito de ir até a casa deles no final de semana, quem sabe passar um dia inteiro lá. 

Claro que os novecentos e quarenta e oito trabalhos que eu tinha para fazer pra outra semana esperaria, afinal o que é uma nota frente a vida humana? Haviam dias de frieza, hoje era um deles. Botava a culpa na TPM - desculpa clássica das mulheres pra agir com grosseria - e ninguém questionava nada. Tirando as cólicas eventuais em que eu preferiria abrir minha barriga com uma adaga ritualística, invocar Satanás e vender minha alma pela menor oferta a continuar sofrendo de tanta dor, ser mulher tinha suas vantagens afinal. E, decididamente voltar pra sala, no meio de um seminário, sorrir de canto, arrumar uma mecha de cabelo atrás da orelha e sentar no meu lugar como se nada tivesse acontecido era incrivelmente vantajoso. Findado o seminário a semana correu depressa, depressa demais eu diria e logo era o dia de ir ao encontro de Helena. Pelo visto demorei pra vir, o muro parcialmente destruído e uma tábua fazendo de remendo demonstrava que algo grande havia acontecido.

E o que eu diria ou faria com ela? o que sera que havia acontecido? A julgar pela tranquilidade do bairro juraria que alguém deu uma marcha ré como não devia. O transito num sábado pela manhã era terrivelmente fraco, por isso cheguei dez minutos antes do combinado. Resolvi esperar a hora pensando em que fazer com Helena. Tinha um carinho imenso por ela, mas não conseguia organizar a merda do meu tempo pra vir vê-la com mais frequência. Ao fim dos minutos bati a campainha. O pai dela me recebeu com um sorriso amarelo e olheiras maiores que o canal de Suez. Me convidou a entrar, contou os fatos ocorridos nos dias anteriores e o quanto minha amiga tinha enlouquecido por causa, provavelmente, das drogas e o quanto ele, no desespero a internou numa clínica de reabilitação. No mesmo instante me veio a mente a musica da amy winehouse e seu rehab "don't go, don't go, don't go".

Ela ficaria lá por um mês até poder receber visitas. E eu o que faria? Ela sabia alguns segredos meus assim como eu sabia que as drogas eram os menores problemas dela. Outro problema surgiria: tinha o dia inteiro de folga, passei a sexta organizando um final de semana com Helena. Podia ceder ao convite dos pais dela de ficar e passar o dia com eles... nada contra gente velha. Mas convidaram por educação, inventei um compromisso de última hora e deixei os pais de Helena sozinhos, segunda feira mandaria alguém arrumar esse muro. Talvez fosse a única coisa que pudesse fazer agora por ela, além de torcer pra ela conseguir domar suas sombras.

Não que eu fosse eximia nisso. Mas se ela aprendesse a esconder tão bem quanto eu, talvez ela tivesse chance nesse mundo maldito. Esse era meu segredo, apenas ela sabia todos os temores e sombras que carregava em meu coração. No carro, voltando pra casa, pensei "e se ela falar sobre meu segredo?" Não aconteceria nada. Talvez fosse bom já me programar pra visita-la no final do mês. Talvez não, seria. Será.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Álibi III

Mesmo sendo extremamente racional, às vezes Sophia agradecia aos céus. No passado, durante sua infância seus pais a obrigavam a ir para a igreja todo domingo, sempre com sua melhor roupa, não que ela achasse ruim isso, era um momento em que as brigas entre seus pais cessavam. Aos doze ela desistiu de seguir os passos deles e parou de ir à igreja. Gostava de passar em frente ao prédio físico para admirar, tinha por gosto deitar em um dos bancos do fundo da Catedral de Nossa Senhora da Luz, depois da aula. Era isso ou aturar a gritaria e os palavrões em casa.

O agradecimento referido anteriormente foi justamente pela escala de plantão de seu noivo cair na data que tinha que seguir sua missão. Na hora que saiu da faculdade entendeu porque o Batman gostava tanto da noite: ela era um ótimo disfarce. Entrou na garagem do prédio e passou pela única câmera na entrada, a negligência em colocar mais câmeras aqui era algo que, em todas as reuniões de condomíniro, era colocado em pauta e ninguem resolvia. Sorte de uns, azar de outros. Aproveitou a situação para trocar de roupa, colocando uma saia curta e uma peruca loira, espirrou vodka pelo corpo afim de seu algoz achar que ela era uma vitma indefesa. Essa era uma de suas fantasias: parecer indefesa, a espera de um cavaleiro de capa e um cavalo branco. Claro que essa fantasia já não cabia mais nela, mas um dia ainda queria um cavalo branco... quem sabe um dia, não? Saiu por uma porta dos fundos da garagem e, dali, para a rua. Calçou a sandália de salto alto que havia ganho de alguem... quando foi? Amigo secreto da turma de faculdade talvez? Provavelmente.

Com certa dificuldade por andar de salto alto - talvez sua única da noite - chegou ao ponto onde veria o alvo. Da pequena bolsa tirou o cartão dele. Curiosamente era a primeira vez que via o nome dele. Alfredo. Nome estranho. Quer dizer, talvez estranho para qualquer outra profissão, mas, para taxista, era um nome que encaixava bem com a função, embora não acreditasse nisso de nome-para-essa-ou-aquela-profissão. Deu de ombros e, do número do chip de celular roubado que comprou mais cedo no centro, discou para ele. Deu o endereço, disfarçou a voz para parecer embriagada. Assim que ele chegou sorriu de canto e disse que preferia sentar atrás pois estava um pouco zonza.

Passou o endereço de onde queria ir. Uma rua distante dez quarteirões dali. Claro, era perigoso ela agir tão perto de casa, mas... e onde ficaria a dose de adrenalina? Conhecia a rua o suficiente para saber que, além de sair da rota várias vezes tornando a viagem mais cara, ele rumava para uma rua escura. Esse era o modus operandi dele: ficar em portas de boates, bares, levando vitmas para ruas escuras. Minutos antes dele para, Sophia abriu a bolsa como se buscasse a carteira. Ele, notando a inabilidade dela, sorria de soslaio, ela, só com o canto do olho notava pelo retrovisor o olhar de caçador. Devia ter feito teatro, Sophia fingia o olhar de caça muito bem.

Da bolsa saiu um pedaço de corda, dessas cordas náuticas que Sophia havia achado no lixo de seu prédio. Quer coisa melhor? Qualquer fibra que ficasse teria uma origem absurda: corda náutica que era vendida em, pelo menos, duzentas lojas apenas num raio de dez quilômetros. Se a busca expandisse para mais, vinte quilômetros a quantidade de lojas passaria fácil de mil. Quer álibi melhor? Agora veio uma dúvida: direita para a esquerda ou esquerda para a direita? Melhor direita para esquerda, a mão direita é mais forte para arremessar a corda para a mão esquerda, embora o lado esquerdo tenha a proteção das trevas e a mão direita tenha mais habilidade em pessoas destras, como Sophia. Decidiu pelo lado esquerdo.

Com a sensação de que era mais fácil do que parecia pediu que o algoz lesse o preço no taximêtro. Enquanto a visão dele se fixou no pequeno aparelho de números vermelhos ela passou a corda de um lado pro outro puxando em seguida. Com o joelho empurrou o banco para frente afim de agilizar o processo. Como um peixe fisgado ele se debatia tentando a todo custo se soltar. Tentou, em vão, tocar a buzina como se pedisse socorro. Os braços ficaram curtos. Tentou jogar o braço para trás afim de tentar bater no braço que segurava o pedaço de corda. Tudo inútil. Em menos de cinco minutos a traqueia esmagada deixou de passar ar, as artérias do pescoço deixaram de levar sangue para o cérebro. Fim. Os braços amoleceram. O movimento, outrora frenético, cessou. Por via das dúvidas segurou mais alguns instantes. Garantir nunca é demais.

Como se encenasse um assalto levou todo o dinheiro que tinha no porta-luvas. Deviam ter uns duzentos e poucos reais. Caminhou para distante do taxi enquanto repassava a lista de lugares onde tocou e onde limpou: maçanetas, banco, apoio de braço... tudo limpo com o bom e velho hipoclorito de sódio. Desligou os faróis, o motor... quanto mais tempo demorasse para acharem tudo, melhor. Como boa diretora de suas próprias cenas de vida, dona de seu próprio destino, já tinha deixado uma muda de roupa em uma lixeira próxima. Enquanto se trocava, tirava a maquiagem pesada e colocava um tênis, ficou pensando em "ser dona do próprio destino". Parecia coisa do velho oeste. Jogou cada peça do disfarce em um lugar diferente, a peruca, depois de lavada com o mesmo liquido de cheiro forte, seguiu o mesmo caminho das outras peças, a única excessão coube à sandália que seria lavada e emprestada a qualquer amiga ou colega que precisasse tão logo fosse possível. Em um passo rápido caminhou até a garagem do prédio sem se preocupar, na rua haviam duas dúzias de pessoas e três dúzias de carros. Entrou pela mesma brecha que saiu, abriu o porta-malas e, de lá, pegou a bolsa onde guardava o notebook e uma sacola com compras. Depois de um banho rápido resolveu assistir um filme até pegar no sono. Por que não um faroeste? Perfeito. Sexta-feira faria uns tacos, compraria uma tequila e, com seu noivo, assistiriam Gran Torino. Não era um faroeste, mas era do mestre de faroestes. Com esse pensamento em mente deixou-se levar nos braços de Morfeu.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Álibi II

Dizem que, depois da primeira vez, a seguinte é mais fácil. Não que a primeira vez de Sophia tivesse sido difícil, atraiu o alvo para onde ela queria, teve todo tempo que quis, até mesmo os álibis que nem precisava obteve. Tudo isso deu a confiança que ela queria para continuar com sua obra. Obra? Por um instante parou e pensou se o quê fazia era uma obra ou apenas uma faxina social. Desde aquela aula que soube que ninguem era preso por muito tempo e crimes de natureza sexual tinham pouquissimas denúncias por vergonha das vitmas ela tinha colocado na cabeça que tinha de fazer algo.

Seu noivo sempre disse isso, se ela colocava algo na cabeça ninguem conseguia tirar. E isso, convenhamos, era pouco ainda. Dessa vez o planejamento foi algo mais de última hora, sem tantos planos. Havia criado uma escala de dificuldade. Tinha feito uma vez e gostado da sensação. Do excesso de adrenalina na corrente sanguínea. Muitos fariam algum esporte radical, mas Sophia havia descobrido outra forma de esporte radical. Sabia que, se começasse e fosse muito afoita em agir, logo a pegariam. Por isso nos seus planos a meta era um por mês.

Afim de confundir alguma eventual investigação decidiu inovar: um mês e um dia. Esse seria o intervalo. Fazendo isso teria tempo de pesquisar sobre o alvo, conseguir alguma informação mais relevante e que facilitasse um pouco o serviço. Claro que teria que ser de maneira discreta. Mas, seu relacionamento com Sérgio, tinha acesso fácil na delegacia e conseguiria ver o quê precisava. Isso lhe pouparia tempo, ela teria tempo para criar eventos que justificassem sua ausência nos lugares onde deveria estar.

Com esse alvo não teria alguns contratempos que teve na vez anterior como o cabine do banheiro ser, relativamente, pequena. Agora seria num local aberto, um parque sem vigilância, às margens de uma rodovia com pouco movimento e no meio do caminho entre a faculdade e cidade vizinha onde tinha alguns amigos que podia visitar e, usar a boa desculpa do trânsito pra justificar a demora no deslocamento.

Usou de seus dotes de atriz. Fingiu ser mais nova que a filha de Sérgio que estava no auge dos seus dezesseis. O alvo não desconfiava dela. Achava que era mais uma menina que caiu em sua lábia. Para Sophia era a mesma coisa: ele caiu na sua lábia. Marcou o horario em uma das estradas vicinais que davam para a rodovia, dez quilometros adiante. Na fantasia do contato on-line disse que uma tia tinha uma pequena fazenda ali e que ela tinha as chaves. O idiota não desconfiava de nada. Como haviam ônibus periódicos ela dizia ir assim. Ele acreditou. Minutos antes da hora marcada ela estava a postos na casa abandonada que não devia ver seus donos haviam vários anos. Um riacho passava atrás. Se a casa havia sido abandonada era por algum motivo. Sophia investigou tudo, sempre com o cabelo preso e as mãos cobertas por luvas cirurgicas brancas.

Obviamente ninguem notaria que foi ali que ocorreu o ocorrido. Escondeu seu carro nos fundos da casa e se preparou, colocou uma roupa mais infantil, ficou atrás de uma janela vendo o carro do alvo chegar. Ele sorriu vendo-a parada ali. Ela sorriu vendo-o vir até ela. Ela disse que a porta estava destrancada. No instante que ele passou a porta ela mirou a espingarda no peito dele. Clemência ele pediu, disse que se entregaria e cumpriria pena. Sophia não ponderou nem um segundo o pedido dele. Um disparo seco no meio do peito. Distância média, uns seis metros. Calibre doze. O estrago não é tão grande assim. O sangue não jorra como nos filmes do Rodriguez ou Tarantino. O cinema era uma ilusão. Mas uma ilusão inspiradora. Talvez muita gente não saiba, mas o cartucho de uma calibre doze não é uma bala rígida como de outros calibres como o trinta e oito ou a nove milímetros, era apenas pequenas bolas de metal que rompiam a saída do cano numa velocidade considerável. Era como uma espingarda de sal do Nhó Lau, que disparava em formato dum spray, mas, ao invés de cloreto de sódio, havia sido trocado por chumbo. Ou qualquer outro metal que carregasse esse tipo de cartucho. Todo o planejamento culminou naquele instante. Os décimos de segundos entre o apertar de gatilho e o atingir.

O corpo caiu dando o último suspiro. Sophia calculou que o piso não seria tão dificil de limpar. A calibre doze havia encontrado na fazenda em uma primeira checagem dias atrás. As balas ela fabricou sozinha com tutoriais que havia encontrado no YouTube. Nessa primeira visita trouxe vários litros de água sanitária. Porém quando começou a arrastar o corpo notou que os projéteis não haviam atravessado o corpo, logo não sujariam o chão. Do ponto onde ocorreu até o riacho eram vinte metros. Com a destreza de quem já fazia isso haviam anos - ainda que fosse apenas sua segunda vez - colocou o alvo no tapete e o puxou até o pequeno mirante que apodrecia por falta de manutenção.

Antes de se desfazer das provas colocou no bolso interno do casaco do alvo um pequeno saco com algumas gramas de cocaína que conseguiu roubar de alguns colegas de faculdade. Sorriu por fazer duas boas ações ao mundo: livrar o mundo das drogas. Duas ações iguais, será que eram duas vezes ou em potência? Elevado ao quadrado? O rio vinha da cidade, por onde havia passado por diversos bairros violentos e com a "tradição" de jogar corpos mortos no rio. Era uma pena, mas esse não ficaria tão óbvio que tinha sido ela. Deu de ombros ao ver o corpo parar de rosto virado para baixo na água. Se seus calculos estivessem certos choveria o suficiente para aumentar a vazão do rio levando toda e qualquer prova. Restou o carro do alvo. Deu uma checada geral. Do porta-luvas tirou o documento do veículo. Alugado? A sorte sorriu para Sophia. Aquela estrava vicinal vinha dos tais bairros violentos. Tirou o carro da fazenda e o deixou alguns quilometros mais próximo da cidade. Ao voltar para a casa passou uma camada generosa de água sanitária no chão. Em dois, no máximo três dias, o cheiro desapareceria por completo. Jogou os frascos no rio. Tirou seu carro e rumou para a cidade. Tomou o cuidado de meter um prego no estepe afim de murcha-lo. Que álibi melhor que um pneu furado?

Ao chegar na casa dos amigos contou sobre o pneu furado e o jeito do cara que parou para ajuda-la. Ao fim de algumas horas resolveu voltar para sua cidade. Diminuiu ao passar por aquela estrada vicinal. Ela parecia idêntica a antes. Ao longe ela podia ver os raios se desenhando ao horizonte. Parou em um borracheiro já na cidade, próximo de onde morava e amigo de futebol nas quintas-feira de seu noivo, e consertou o pneu. Custou mais barato por ele e Sérgio serem amigos. Sophia pediu que ele não falasse nada para seu noivo. Tinha ido à um bairro um pouco barra-pesada entregar alguns documentos e alguem devia ter aprontado com ela. Ele pediu que ela relaxasse, coisas assim aconteciam, ainda mais com uma moça boa como Sophia. Ela agradeceu.

Assim que pisou em casa ouviu um trovão. E outro e mais um. Tomou um banho demorado, nas mãos usou sabonete esfoliante e hidratante. Preparou um macarrão à carbonara que ficou pronto no tempo exato que as chaves giraram no tambor da fechadura. Sérgio havia chegado. Sophia foi ao encontro dele, trocaram um beijo rápido enquanto ele dizia estar feliz que o cheiro que sentiu desde o começo do corredor era daqui. Antes que ela pudesse convoca-lo para a mesa ele correu ao banheiro dizendo tomar uma ducha apenas para tirar o suor do corpo. Cinco minutos depois ele estava à mesa onde ela servia o jantar e os primeiros pingos de chuva molhavam a janela. E a chuva forte prevista, afinal, veio.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Álibi

Parou no batente da porta do banheiro feminino ajustando o comprimento da saia ao correr da coxa. Uma rápida passada de mãos pelos cabelos, um sorriso fino no canto dos lábios, de soslaio olhou primeiro a direita, depois a esquerda. Não mais do que dois segundos e decidiu seguir pela direita. O som dos saltos no corredor praticamente vazio da faculdade ecoavam e se dissipavam com a mesma facilidade que a água na calçada secava ao sol de verão.

Enquanto caminhava observou que ali não haviam cameras de segurança. Mais uma coisa boa. Não era a primeira vez que fazia aquilo em um banheiro. Muitos pensariam porque um banheiro com tanto espaço isolado e longe de qualquer perigo de ser descoberto. Simples: Sophia amava a sensação de ser pega no flagra. No fundo era o quê ela mais queria. E, no mesmo fundo, era o quê ela menos queria. Afinal não seria nada legal ela, noiva de um dos policiais mais casca-grossa da cidade ser detida no banheiro com outro cara.

Ao contrário do que possa parecer aos meros olhares mortais ela, estudante de direito, achava que aquela ali era a melhor forma de colocar para fora aquele desejo que sempre teve desde quando era adolescente, nessa mesma cidade. Agora, maior de idade, podia realiza-lo sempre que fosse possível e sempre que achasse necessário. Foi vista por alguns professores que fizeram a pergunta óbvia: o quê ela fazia ali. Como uma lebre escapando do bote de uma cascavel disse vir devolver alguns livros. O sistema de empréstimo da biblioteca confirmaria. As cameras naquele corredor também. Não demorou mais do que meia dúzia de minutos no banheiro - tempo completamente aceitavel para uma mulher que vai ao banheiro - e, agora, comprava um pão de queijo na lanchonete mais cara do campus, pois ali tinham cameras. Se, fosse confrontada de ter feito o quê fez, ela tinha um excelente álibi: seus professores.

Irônicamente um dos professores era de direito penal, um de direito da família e a outra a professora de legislação. Conversaram não mais do que dez minutos sobre o ano, sobre as possibilidades que poderiam se abrir pra ela no ano que vem em carater de estágios no fórum. Agradeceria e até falou de pagar uma pizza aos professores se isso acontecesse. Todos riram e alguem falou que poderia ser algo da natureza de propina. Novas risadas. Sophia se despediu desejando para todos boas festas e todas aquelas coisas que todo mundo desejava a todo mundo.

Olhou o relógio. Vai ficar apertado. Acelerou pelas vias internas do campus até a saída. Passou o cartão do estacionamento no horario que queria. Perfeito. Enquanto dirigia pensou em todos os seus passos. Devolver o livro que havia pego semanas antes. Passar pelas cameras. Atrair ele para o banheiro feminino. Fazer o quê tinha que ser feito, sair, comprar um pão de queijo e ir embora. No caminho o bônus dos professores lhe fez somar mais pontos de álibi. No penúltimo sinal antes de chegar à casa de seu noivo policial retocou a maquiagem.

Sem nenhum pudor colocou o carro na garagem. Era um prédio simples, mas mais bem cuidado que Sérgio morava quando se conheceram. Ela veio fazer queixa que uma amiga havia sido assaltada, enquanto a maioria da delegacia fez a "operação-padrão" ele se prontificou em ajudar Sophia. Em parte por ela ser bonita e atraente, em parte por ver nela uma chance de recomeçar que Helena havia, indiretamente, plantado nele.

No elevador ela retocou, novamente, a maquiagem e arrumou a roupa no corpo. Deviam inventar algum método de dirigir um carro que não amassasse a roupa. Checou a hora. Ele havia chegado deviam ter alguns minutos. Com sorte convidaria ele para sair, pegar um cinema. Enquanto andava pelo corredor do quarto andar repassou que ninguem passaria naquele banheiro até amanhã. Ou, com sorte, até segunda-feira. Até lá os odores exalariam e ficaria claro o quê aconteceu ali. Repassou os horarios. Os álibis. Tudo dentro do planejado. Perfeito. Ninguem suspeitaria dela. Nem mesmo seu noivo com seu faro de detetive policial.

Na terça-feira seguinte soube que acharam sua obra. A televisão dizia que a, agora, vitma era suspeito de inúmeros estupros no campus da faculdade, a polícia, por meio de nota, disse não ter a menos suspeita de quem possa ser. Sérgio até questionou à Sophia se ela sabia de algo. Pelo estágio da decomposição alguns peritos dataram como entre quinta-feira e domingo mas que, com o calor que fazia nos últimos dias, não se podia precisar nada. Ela disse não saber nada, que ouvirá falar dos casos de estupro, mas era em outro bloco, distante do dela. Ele, claro, acreditou nela e trocaram de assunto. Faltava decidir onde passariam as férias, se no Rio ou na casa de praia dos pais dela em Angra. Decidiram por Angra. Angra dos Reis.